Reino das Matas na Quimbanda | Parte 1
Este conteúdo compõe uma série de estudos e pesquisas sobre a Quimbanda. Dentro desse campo, os reinos se apresentam como um aspecto da tradição que desperta o interesse de muitas pessoas, sejam iniciados ou não. No entanto, ao buscar referências na internet, seja em produções de sacerdotes ou em trabalhos acadêmicos de antropologia, teologia ou psicologia da religião, geralmente encontramos apenas pequenas citações ou comentários. Raramente, porém, encontramos conteúdos mais extensos e densos sobre os reinos da Quimbanda.
O tema é vasto, pois exige a absorção de muitos conceitos, informações e grande conhecimento para interpretar a densidade simbólica que habita os reinos de Quimbanda.
Também considero importante, logo no início, compartilhar um ponto de vista pessoal em relação aos reinos. Entendo que, antes de haver o reino, há a região — e é nessa região que encontramos reinos, ou melhor, realidades que se sobrepõem e que muitas vezes possuem regras próprias. Podemos recorrer a vários exemplos que ilustram bem essa ideia. Os quilombos, por exemplo, dentro de uma mesma região, constituíam reinos próprios, com regras, economia e religiosidade específicas. E, ao mesmo tempo, disputavam território com outros reinos — portugueses, espanhóis, entre outros. O mesmo ocorre com a rua, onde transitam pessoas de diferentes culturas, religiões, idades, gêneros e profissões, criando e exercendo regras de convivência nesses espaços, o que dá origem a sistemas de relações e códigos próprios.
Outro exemplo pode ser observado entre os moradores de rua, que desenvolvem uma realidade própria de trânsito e uso dos espaços públicos. Esses casos ilustram como, em uma mesma região, podemos encontrar diferentes regras, códigos morais, estruturas de liderança ou controle, recursos explorados, sistemas de troca e economia, além de diversidade religiosa. Por isso, a região precede o reino “x” ou “y”. E essas realidades podem até mesmo divergir totalmente em escopo social e normativo. Um exemplo disso são os bairros boêmios, onde encontramos diversos espaços físicos que, de certa forma, promovem um relaxamento moral — bares, festas, casas de prostituição, venda de drogas etc. Enquanto isso, em uma mesma área, bairro ou cidade, podemos também encontrar uma coletividade regida por valores cristãos rígidos, em oposição direta à realidade da boemia. Muitas vezes, entretanto, observamos indivíduos transitando de um espaço a outro, sendo mais comum que isso ocorra de ambientes regidos por normas rígidas para aqueles mais flexíveis. Nossa história está repleta de relatos de políticos, servidores públicos e líderes religiosos frequentando bordéis, por exemplo.
Geralmente, esse trânsito entre espaços se manifesta em momentos específicos. Dependendo da região, pode ocorrer com maior frequência em determinadas estações, períodos do mês, turnos ou em situações urgentes, como comemorações, rituais ou necessidades de saúde. Nas matas, por exemplo, encontramos toda uma flora que se manifesta à noite, assim como certos animais adaptados à vida noturna, com sentidos e biologia moldados a esse ciclo. Já na boemia, vemos um alto fluxo de pessoas à noite, especialmente após o expediente de trabalho, que aumenta ainda mais em períodos de pagamento de salários.
Acredito que tenha ficado claro que a região agrega múltiplos “reinos” e que os agentes de cada reino possuem suas próprias regras e habilidades. No entanto, o reino está sempre alicerçado nas regras da região. É a partir desse aspecto que podemos abrir nossa análise sobre os reinos da Quimbanda.
A estrutura geográfica das regiões dos reinos de quimbanda
Já parou para pensar como seria a rotina de um quimbandeiro no México, durante um ritual na calunga pequena? Como seria para ele adentrar um cemitério mexicano, em um contexto onde deuses e estruturas culturais estão alicerçados em um culto aos mortos muito particular?
E como seria para um quimbandeiro penetrar nas matas do Norte e Nordeste do Brasil, regiões em que observamos a proeminência do culto da Jurema? Imagine um quimbandeiro entrando na mata do Catucá, em Abreu e Lima, no interior de Pernambuco, local onde teria morrido o último integrante dos Malunguinhos — e que talvez seja um dos maiores pontos de força da Jurema.
Perceba: são as mesmas regiões, mas com reinos que se sobrepõem! Ambos compartilham elementos estruturais em comum, e o culto — o ritual — se centra nesses elementos. É justamente a partir da análise deles que podemos começar a esboçar uma compreensão mais profunda dos reinos da Quimbanda.
A estrutura da região das matas e o Reino das Matas na Quimbanda
Estudar a estrutura da região das matas é, antes de qualquer outra abordagem, um aprofundamento no campo da biologia. Podemos começar pelo conceito de bioma, que pode ser: Floresta Amazônica (tropical úmida), Floresta Atlântica, Taiga (boreal), Florestas Temperadas ou Florestas Tropicais Secas.
Cada um desses biomas possui um clima próprio — definido por índices de chuva, temperatura e sazonalidade — que determina a sua biodiversidade.
Dentro de cada floresta, encontramos diferentes ecossistemas, entendidos como o conjunto de interações entre os seres vivos (plantas, animais, fungos e micro-organismos) e os fatores abióticos (solo, água, clima e luz).
E temos algo muito importante no ecossistema que é a interdependência:
- Ciclo da água (chuvas, transpiração das árvores, rios).
- Ciclo do carbono (absorção de CO₂ pelas plantas, decomposição da matéria orgânica).
- Ciclo dos nutrientes (folhas caem → se decompõem → alimentam o solo → sustentam novas plantas).
Em florestas tropicais, por exemplo, encontramos a estratificação vertical, ou seja, a organização da floresta em camadas.
Na base, temos o estrato herbáceo, o solo florestal, onde se desenvolvem plantas adaptadas à baixa luminosidade, como plantas rasteiras, fungos e musgos. Essa camada também funciona como habitat de uma grande variedade de animais, além de abrigar fungos e bactérias em constante processo de decomposição.
A flora é vasta e representa uma importante fonte de recursos e usos. Dentro dela, encontramos grupos de espécies que dependem completamente de sistemas específicos, muitas vezes vinculados diretamente a uma única espécie vegetal.
Vamos ter:
- Árvores: espécies dominantes que formam o dossel.
- Arbustos e trepadeiras: ocupam o sub-bosque, muitas vezes em competição por luz.
- Epífitas: plantas que crescem sobre outras (ex.: orquídeas, bromélias).
- Lianas: cipós que usam outras árvores como suporte.
- Musgos, líquens e fungos: vitais na decomposição e reciclagem de nutrientes.
É interessante observar que os recursos mais acessados nas matas pelas tradições de culto aos ancestrais encontram-se, em grande parte, na flora — seja por meio de chás, pós, banhos, defumações, alimentação ou assentamentos. Além disso, na estrutura das árvores encontramos o axis mundi de muitas tradições.
Compreender a função de cada elemento da flora pode ser uma das chaves de acesso a atributos poderosos dentro da Quimbanda e de diversas outras tradições voltadas ao culto dos ancestrais. Em todas as nações, vemos os povos originários buscando sempre a preservação de suas florestas e utilizando a flora como fonte de cura para diferentes tipos de doenças e enfermidades — sejam físicas, emocionais, psíquicas ou espirituais.
Já a fauna apresenta uma ampla diversidade de seres vivos, cuja composição varia de acordo com o bioma. É na fauna que identificamos as forças instintivas que percorrem as várias camadas da floresta: alguns animais se destacam como predadores, enquanto outros sobrevivem desenvolvendo estratégias de fuga, camuflagem ou até mesmo vivendo em bandos, unindo forças para resistir a ataques de predadores.
A fauna é dividida em:
- Mamíferos grandes: onças, tigres, ursos, elefantes, gorilas.
- Aves: tucanos, araras, corujas, águias.
- Insetos: cupins, formigas, borboletas, besouros.
- Répteis, anfíbios e demais fauna aquática: serpentes, lagartos, rãs, peixes, crustáceos, moluscos.
- Microfauna: microorganismos do solo (essenciais ao ecossistema).
É interessante observar que é na fauna que encontramos a maioria dos ancestrais se apresentando, como caboclos, exus e encantados. Esse é um dos pontos que o quimbandeiro pode explorar de forma muito profunda.
Já ouvi alguns quimbandeiros mencionarem exus que não descem mais em terra, como o Exu Formiga. Mas pensemos: em um bioma, em um ecossistema e em sua flora, com quais elementos a formiga está diretamente ligada? Terra, consumo da flora, consumo de insetos, pequenos animais… Além disso, a simbologia da formiga é riquíssima: sua morada (o formigueiro), sua força coletiva, a presença da formiga-rainha, e ainda o fato de que muitas espécies acumulam recursos não apenas para si, mas para produzir fungos comestíveis em mutualismo.
Será que a terra de formigueiro não poderia ser considerada um elemento de poder em um assentamento? E se o assentamento fosse firmado diretamente nessa terra, carregando a energia da coletividade e da fertilidade? Esse mutualismo também nos leva a refletir: quais fungos podem ser utilizados como agentes de transformação na feitiçaria? Quais plantas passam por esse processo de transformação e, ao serem modificadas, revelam propriedades ocultas?
Poderíamos, inclusive, pensar em arriar uma oferenda aos pés de um formigueiro, oferecendo alimentos para que Exu Formiga viesse em nosso auxílio.
Percebem como a fauna está intimamente ligada à transformação dos elementos da mata? Seja consumindo frutos, folhas e plantas; bebendo das águas de rios e lagos; estabelecendo relações de mutualismo; ou atuando na decomposição e transformação da matéria orgânica em fertilidade para o solo.
Compreendem o fio? Percebem como a floresta com sua flora, fauna e elementos são fontes não apenas de energia, mas também de um fluxo constante de ciclos de transformação da vida, sustentando a floresta como uma imensa fonte de fertilidade?
Não existe magia, feitiço ou movimentação de forças fora do ritmo da natureza. A natureza não aceita arritmia! Tudo aquilo que sai do seu compasso é devorado. Experimente ficar no caminho de uma colônia de formigas-legionária na mata — você não sobreviverá para contar a história!
Fontes de força no reino das matas
Com toda essa estrutura em mente, podemos buscar um aprofundamento tanto simbólico quanto físico nos locais da mata que funcionam como pilares de manifestação de divindades, entidades, encantados e consciências. Nesses espaços, é possível carregar um intento, um feitiço, com forças atuantes e transformadoras.
As nascentes dos rios, os picos das montanhas, o coração da floresta, um cupinzeiro, um formigueiro, uma colmeia de abelhas, um ninho de pássaros, uma colônia de fungos ou de bactérias — todos são exemplos de núcleos onde ocorre a transformação da vida e a circulação de elementos em fluxo com o ecossistema.
Geralmente, percebemos os efeitos negativos no meio ambiente quando esses núcleos de forças naturais são profanados. Se pássaros, abelhas e demais polinizadores e dispersores perdem suas moradas, sentimos impactos em diversos ecossistemas que dependem do ciclo de polinização e fecundação das flores. Da mesma forma, se uma montanha é explorada, o percurso de um rio pode ser alterado, gerando grandes impactos em todo o ecossistema hídrico. Esses são apenas alguns exemplos das consequências que podem surgir quando há profanação desses núcleos de forças naturais.
Na Quimbanda, geralmente reconhecemos como locais de uso ritual estradas de mata, cachoeiras, rochas e árvores. Porém, existem muitos outros núcleos de poder que permanecem pouco explorados, seja por desconhecimento ou falta de prática, o que acaba limitando o campo de ação dos ancestrais.
O poder da fertilidade e fecundação do reino das matas
A Pombagira é uma flor cheirosa
Uma flor cheirosa em meu jardim
Todo mundo fala mal dela
Só não tem coragem de falar dela pra mim
Ela é uma cobra cainãna ela é mona bará
Lélélé ô mona bará
Para falar de fertilidade e fecundação, vou utilizar o folclore da região do Pará e da Amazônia, que narra a história dos irmãos Norato e Maria Cainãna, irmãos-serpentes, filhos de uma indígena com um boto. Encantados, mas abandonados à beira do rio Tocantins, um dos afluentes do rio Amazonas, cresceram de formas diferentes: Norato tornou-se bondoso, enquanto sua irmã, Maria Cainãna, cresceu geniosa e tomada pela raiva. Enquanto Norato se transformava em homem à noite, como seu pai boto, e ia às festas, sua irmã atacava sem dó os banhistas, derrubava barcos e espalhava terror. A lenda conta que Norato a matou em uma luta, o que nos revela que Cainãna representava uma força incontrolável e indomável.
É muito interessante observar esse ponto cantado, em que se diz que Pombagira é uma flor cheirosa. Isso nos remete a um atributo da dinâmica de fertilidade e fecundação da floresta, como o perfume das flores que atrai insetos, polinizadores, pássaros e demais dispersores. Ao mesmo tempo, o ponto também a chama de Cainãna, apontando para um atributo destrutivo. Esse contraste representa perfeitamente a dualidade de Pombagira: geradora e desagregadora, senhora do bem e do mal, regente da dualidade.
E você pode se perguntar: mas existem flores que representam essa dualidade? Claro, as plantas carnívoras! (rsrsrs) Esse é apenas um exemplo provocativo para mostrar que, no reino das matas, a beleza pode ser também mortal.
Na continuação desta série, vou falar mais especificamente sobre plantas e explorar as estruturas da flora dentro de uma perspectiva quimbandeira.
Podemos afirmar com certeza que a fertilidade e a fecundação são forças atrativas que fazem a floresta prosperar e renovar seus ciclos. Sempre que adentrarmos o Reino das Matas, devemos ter em mente que as magias, feitiçarias e energias manipuladas ali carregam em sua estrutura essas forças, fazendo com que nosso intento cresça em potência e realização. É o lugar onde os opostos se realizam um no outro, gerando vida. Na mata, tudo é integrado: as forças em jogo coexistem em harmonia e sinergia. É fundamental lembrar que muitos agentes estarão colaborando na realização de nossas feitiçarias. Por isso, indico sempre retribuir com uma oferenda à alma da mata, em gratidão pelo trabalho realizado por suas forças.
O Reino das Matas é uma oportunidade de reintegração com nossa ancestralidade e com nossa relação com a natureza, como seres naturais que somos. Eu diria que trabalhar com esse reino exige despir-se do egoísmo, pois não é apenas da caça que vivemos na mata, mas também da água, dos frutos, das ervas de cura, do abrigo das árvores, da madeira para o fogo. Precisamos que os ciclos estejam em equilíbrio para que a floresta continue nos oferecendo o necessário.
A terra é talvez a maior representante física e simbólica da fertilidade da floresta, pois nela tudo nasce, ou dela depende para nascer. Essa potência fértil é renovada e potencializada por eras de ciclos de nascimento e morte, em que toda vida, ao encerrar seu ciclo, alimenta a terra. E aqui vai um saber importante: em um assentamento em que alocamos terra, ela representa a morada dos ancestrais. Mas essa terra precisa ser fértil, para que ali germine e crie raízes o culto ao nosso ancestral. Alimentar o ancestral é também alimentar a terra onde ele está assentado. Reflita sobre isso.
Conclusão da parte 1
Falar do Reino das Matas é falar, talvez, do reino de maior complexidade e abundância de elementos, sub-reinos, povos e seres diversos. Este primeiro conteúdo é apenas uma abertura ao tema, que dificilmente será esgotado ao final da série. Ainda assim, espero deslocar um pouco as perspectivas, para que vocês possam acessar mais profundamente as potências desse reino.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
Participe, é totalmente gratuito
Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
