Quimbanda ancestral | Como a genealogia e o culto aos antepassados reconecta as raízes ancestrais

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

Quimbanda ancestral | Como a genealogia e o culto aos antepassados reconecta as raízes ancestrais Podemos perceber que a busca por uma Quimbanda Ancestral é um movimento crescente em todo o Brasil. Muitas pessoas têm como objetivo resgatar uma relação de pertencimento com o mundo por meio da retomada da ancestralidade. A Quimbanda, com sua estrutura religiosa de culto a Exus e Pombagiras, torna-se o principal canal de reconexão com essa espiritualidade ancestral. No entanto, quando buscamos informações que nos ajudem a restabelecer essa conexão, muitas vezes esbarramos em um sistema acessível apenas a iniciados ou àqueles que possuem melhores condições financeiras. Mas será que existem formas acessíveis de iniciar essa jornada rumo à ancestralidade de maneira autêntica, verdadeira e, ao mesmo tempo, acessível? Sim, existem! E espero compartilhar aqui uma luz no fim do túnel para todos que possam estar nessa mesma busca. A reconstrução dos caminhos até as raízes ancestrais Árvore genealógica e o choque de retorno Acredito que o primeiro passo para iniciar esse processo de reconexão com a ancestralidade deva partir do núcleo familiar, uma vez que a família é nosso primeiro elo de conexão direta com nossos antepassados, sejam eles divinizados ou não. Até que tenhamos consciência geracional — de um processo de entrelaçamento de vidas, decisões e experiências que definiram as descendências genealógicas e pavimentaram o encontro de nossos pais até que nossa existência pudesse emergir — muitos ancestrais podem manter-se recolhidos na memória inconsciente. A sabedoria ancestral das matriarcas Eu, por exemplo, passei a ter acesso aos meus ancestrais no momento em que iniciei um processo de pesquisa genealógica profunda da minha família, além de um estudo aprofundado sobre a história das regiões onde meus antepassados viveram. Mas isso ocorreu principalmente quando determinei que o centro da minha pesquisa seria a reconstrução da história das matriarcas da família. As mulheres foram aquelas que sofreram todos os tipos de apagamentos, começando pela perda do sobrenome da família de origem quando se casavam e tinham que assumir o sobrenome do marido. Com o passar das gerações, os laços com os ramos matriarcais foram se perdendo, especialmente considerando que as mulheres eram obrigadas a acompanhar o marido — o que muitas vezes significava morar em outro estado ou em cidades muito distantes. Minha avó materna, Antonia Ribeiro, por exemplo, foi afastada de parte da sua família, que em grande parte residia em Lauro Müller, em Santa Catarina. Ela teve que acompanhar meu avô, Omar Blauth, indo residir em Minas do Butiá, no interior do Rio Grande do Sul. As sombras do passado ancestral Mas parte do processo é adentrar as sombras do passado, onde habitam memórias apagadas, ocultadas e, por vezes, enterradas. Minha família, por exemplo, sempre acreditou que o ramo dos Blauth fosse isento de qualquer atrocidade no passado, mas descobri fortes relações com o sistema escravocrata. Encontrei registros, trabalhos acadêmicos, indícios de cultura do compadrio e diversos fatos comprovando que o ramo familiar esteve envolvido com a escravidão. Chamei esse momento de choque de retorno (que inclusive se tornou o título do meu livro). Da mesma forma, encontrei ramos da família ligados aos Pereira — um ramo distante da família Ribeiro, por parte da minha mãe — onde identifiquei registros de Brígida Pereira, que comprou a própria alforria e a de seus filhos, além de ter sido casada com um português, algo surreal se levarmos em conta o período sombrio da escravidão no Brasil. A reconciliação dos laços rompidos Mas há também momentos muito belos, como a reconciliação do meu pai com o ramo patriarcal dele, o ramo dos Ferreira. Meu pai, assim como meus tios, cresceu com muita mágoa do meu avô, Antonio Arlindo Ferreira, pois ele abandonou minha avó com os filhos, o que gerou profunda revolta por parte do meu pai e dos meus tios. Esse sentimento afastou-os de grande parte da família Ferreira. Porém, no processo de busca por um familiar da árvore que pudesse me iniciar na Quimbanda, acabei encontrando Antonio Gilberto Ferreira, então com 75 anos, que mora exatamente na região onde a maioria dos antepassados Ferreira viveu e ainda vive. Gilberto foi meu iniciador e meu feitor na Quimbanda Tradicional Gaúcha, o que me levou a Arroio do Meio, terra dos meus ancestrais. Isso possibilitou que meu pai reencontrasse seu primo, após cerca de 60 anos sem se verem — meu pai sequer tinha lembrança dele, pois era muito criança na última vez em que estiveram juntos. Então, os choques de retorno são catárticos, pois promovem reconciliação com os antepassados e uma poderosa ressignificação da memória. E é esse poder de ressignificação da memória ancestral que restaura o vínculo emocional com a ancestralidade, pois, nesse momento, os aceitamos, queremos tê-los por perto, pois agora os vínculos estão restaurados. Por isso, afirmo que sem memória não há ancestralidade. Ancestrais em terra, pés descalços, vida sofrida A colonização dos ancestrais, uma crítica epistêmica Pode não parecer, mas o processo de colonização foi tão profundo nas tradições de Quimbanda e Umbanda que muitas representações de espíritos ancestrais passaram a se distanciar significativamente da autenticidade de suas identidades originais. Observa-se um epistemicídio — isto é, a redução, apagamento ou substituição de saberes tradicionais — atuando de forma contínua nessas tradições. Isso se evidencia, por exemplo, em correntes contemporâneas que buscam relacionar espíritos ancestrais a modelos de evolução espiritual do kardecismo ou mesmo a estruturas de divindades europeias. Não se trata de negar que determinados ancestrais, em vida, possam ter dominado conhecimentos de outras matrizes culturais e hoje os incorporem como ferramentas espirituais. O problema emerge quando tais saberes, originalmente particulares a uma linhagem ou entidade específica, passam a ser generalizados como normas, critérios iniciáticos ou padrões universais de culto — especialmente em tradições que afirmam honrar ancestrais de território e contexto brasileiro. Um exemplo recorrente é a afirmação: “Maria Padilha tem origem na Espanha.” Embora seja verdade que o culto tenha raízes ibéricas, seu caminho até o Brasil se deu, majoritariamente, através das camadas populares. Não foi apenas a elite

Quimbanda em Porto Alegre e o culto a ancestrais e antepassados

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

Quimbanda em Porto Alegre e o culto a ancestrais e antepassados Ao mesmo tempo em que vemos uma explosão de pessoas buscando a Quimbanda para ter acesso a feitiços com foco em amarrações e destruição, percebemos surgir um movimento que busca, no culto a Exus e Pombagiras, o resgate da relação com a ancestralidade e a ressignificação com os antepassados. Não busco separar tradições entre certas e erradas, nem entre fundamentadas ou não, pois cada tradição possui suas bases fundantes. Se esses princípios causam efeitos positivos ou negativos, e se de alguma forma ferem valores éticos, cabe às leis dos homens e às leis universais espirituais julgar e punir o que couber a cada um. Acredito que exista uma lei evolutiva espiritual, observável em tradições bantas, por exemplo, nas quais a coesão comunitária, a integração com a natureza e o princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito são pilares fundamentais. Da mesma forma, não “agencio” os ancestrais e antepassados para que utilizem seu poder de ação a fim de prejudicar outros espíritos, sejam encarnados ou desencarnados. Acredito, sim, que existam diversas categorias de espíritos que podem ser manipulados para fins negativos, mas, na Rama dos 4 Caminhos, a coesão espiritual é um pilar que nos fortalece a cada ação, interna ou externa. Pensando em tudo isso, busco compartilhar perspectivas, saberes e conhecimentos, para que pessoas em busca de uma experiência semelhante encontrem um ponto de convergência na Rama dos 4 Caminhos, onde desenvolvemos possibilidades de resgate do pertencimento espiritual, comunitário e ancestral. Como a Rama dos 4 Caminhos pode ajudar você a reencontrar a sua ancestralidade Aqui, na rama, desenvolvemos possibilidades de construção de pertencimento que, em sua quase totalidade, contemplam a busca pelo saber — seja no mapeamento genealógico, no desenvolvimento de uma visão hermenêutica da ancestralidade, nas imersões rituais ou na partilha de saberes do núcleo de estudos e pesquisa. Resgate da árvore genealógica e ancestral É interessante perceber que foi justamente na busca pela história dos meus ramos familiares que resgatei a minha ancestralidade e que os antepassados e ancestrais iniciaram uma retomada de coesão espiritual dentro da família. Hoje, não sou o único dentro da família que tutela a rama: outros ancestrais já se manifestam e começam também a retomar essa coesão espiritual. A busca pela história da família, dentro de uma perspectiva genealógica, é outro pilar da Rama dos 4 Caminhos, pois, a partir dela, cavamos não apenas nas profundezas da nossa relação com as sombras familiares, mas também com as sombras de toda a família. É nesse processo que vivenciamos diversos choques de retorno, o que é fundamental para a conscientização das dívidas e responsabilidades herdadas de nossos antepassados. Utilizo minha própria família como exemplo: um dos ramos foi escravocrata, suprimindo a existência de outros. Uma série de atrocidades se entrelaçou em escolhas que pavimentaram a nossa existência presente. Precisamos resgatar a história daqueles esquecidos, apagados, assassinados — que sofreram diversas crueldades das quais muitos de nossos familiares participaram como executores — e cabe a nós recontar essa história, ressignificando nossa relação com o passado. Assim como no meu caso, encontrei também diversos familiares negros que foram escravizados e ex-escravizados, que resistiram a toda essa onda obscura da bestialidade humana e que também pavimentaram os caminhos para a existência da minha família. Nesse processo, os antepassados começaram a se manifestar, pedindo oferendas; os ancestrais também passaram a se manifestar — como Exus, Pombagiras, Encantados —, iniciando essa retomada de coesão ancestral que hoje é base e pilar fundante da Rama. Aqui, na Rama, você é instigado, estimulado e conduzido a esse resgate genealógico, que remodela profundamente as relações familiares e com os antepassados, pavimentando o presente para que os ancestrais passem a se manifestar em sua vida. Construir uma visão mais hermenêutica da ancestralidade O saber é um processo em constante construção, o que nos conduz a uma ampliação de conhecimentos que nos ajuda a aprofundar e construir uma compreensão mais plena das experiências com a ancestralidade. Na Quimbanda Gaúcha, por exemplo, em um primeiro momento pode parecer difícil mapear uma cosmologia, já que a tradição se origina de um movimento de disrupção, no qual a linha da esquerda se descola da Umbanda e se fundamenta, em grande parte, em saberes e fundamentos do Batuque. Mas, ao mesmo tempo em que isso pareça difícil, acaba ocorrendo uma fusão ampla, já que o Batuque, diferente do Candomblé — onde as nações priorizaram manter as tradições restritas a cada uma delas —, apresenta uma fusão entre as nações. Assim, podemos ver, por exemplo, voduns cultuados junto a orixás. Essa fusão de tradições é a atmosfera onde a Quimbanda Gaúcha surge; por isso, vemos nos pontos cantados antigos uma forte relação de Exus e Pombagiras com orixás e voduns. Um exemplo muito evidente dessa fusão é o ponto: “Bará da rua, Bará Exu, Bará da rua, saravá Destranca Rua.” No Batuque, o Bará da Rua é o Bará Lodê, apontado como um Bará responsável pela proteção da casa, junto com Ogum Avagã, que é um vodum. Os batuqueiros mais antigos dizem que Bará Lodê e Ogum Avagã utilizam os Exus e Pombagiras para diversos trabalhos de proteção da casa, o que reforça essa relação de troca e compõe uma cosmologia muito ampla. É através do desenvolvimento de uma visão mais hermenêutica que buscamos resgatar a historicidade dos cultos, bem como uma perspectiva teológica, que também auxilia muito no entendimento da nossa relação com o sagrado, além da importância e da estrutura ritual. Não posso deixar de citar a psicologia da religião, onde nos aprofundamos na relação do culto aos ancestrais em uma dimensão psíquica, compreendendo a importância da ancestralidade no desenvolvimento de nossas virtudes e potencialidades rumo a um estado de espírito pleno. Aqui, na Rama dos 4 Caminhos, o saber é construído a partir da reflexão da vivência sob uma ótica multifocal, para abordar a experiência da forma mais completa possível. Participar do Núcleo de estudos e pesquisa ancestral O Núcleo de

Quimbanda em Porto Alegre, uma oportunidade de  conectar-se com sua ancestralidade

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

Quimbanda em Porto Alegre, uma oportunidade de conectar-se com sua ancestralidade A ancestralidade em terra gaúchas A Quimbanda no Rio Grande do Sul não é apenas uma modalidade ritual: é uma expressão religiosa autônoma, dotada de fundamentos próprios e de uma vitalidade única no cenário brasileiro. Mais que uma “linha de trabalho”, ela representa um culto independente a Exus e Pombagiras, estruturado em teologia, rito e cosmovisão próprios (Giumbelli & Almeida, 2021). O presente texto busca aprofundar a compreensão da Quimbanda afro-gaúcha, revelando suas origens, rituais e fundamentos, e destacando a importância histórica de Porto Alegre como seu principal polo formador. 1. A Formação Histórica: A Linha Cruzada e o Berço Gaúcho A Quimbanda afro-gaúcha emerge em um contexto de forte influência do Batuque — o culto jeje-nagô do Sul — e da Umbanda, resultando no que se convencionou chamar de Linha Cruzada: o cruzamento de fundamentos entre ambas as tradições. 1.1 O Contexto de Cruzamento e a Autonomia Ritual A Linha Cruzada surgiu no final dos anos 1950 como um ponto de encontro entre o Batuque e a Umbanda (Leistner, 2014). A Quimbanda gaúcha, entretanto, transcendeu esse cruzamento, alcançando independência ritual e deslocando Exus e Pombagiras do papel subalterno que ocupavam na Umbanda. Ressignificação: A Quimbanda reformulou a presença de Exus e Pombagiras, transformando-os de entidades marginais em forças centrais de culto. Centralidade: O eixo ritual passou a girar em torno das feituras de Exus, com assentamentos, oferendas e cortes sacrificiais análogos aos dos Orixás (Regis & Lages, 2024). Herança do Batuque: O ato sacrificial — o corte — é um dos fundamentos herdados do Batuque, garantindo a vitalidade dos assentamentos e selando a autonomia da religião. 1.2 Lideranças e Consolidação em Porto Alegre A consolidação da Quimbanda afro-gaúcha está ligada a figuras históricas que lhe deram forma e legitimidade. Mãe Ieda de Ogum: pioneira em Porto Alegre nas décadas de 1950-60, reorganizou ritos, cosmologias e valores éticos da nova tradição (Silva, 2008). O Exu da Alta: seu Exu das Sete Encruzilhadas, conhecido como Seu Sete, tornou-se símbolo da ascensão social e espiritual dos Exus, exibindo poder e requinte — a chamada estética do Exu da Alta (Leistner, 2014). 2. Rituais de Iniciação e o Culto à Ancestralidade A iniciação é o rito de passagem que sela a entrega do fiel ao espírito e conecta sua linhagem viva à linhagem ancestral. É um momento de renascimento e reintegração à comunidade espiritual (Regis & Lages, 2024). 2.1 A Cerimônia Iniciática O processo iniciático envolve uma teia de relações entre espíritos, objetos, plantas, animais e fluidos. Não há um modelo único: cada casa guarda seus segredos. Em geral, a iniciação compreende consultas oraculares, banhos de limpeza e oferendas, culminando na entrega do adepto ao seu espírito regente. Vontade e Oráculo: a adesão parte da vontade do adepto, mas deve ser confirmada pelo oráculo do Guia-Chefe. Ancestralidade e Vínculo: Exus e Pombagiras são expressões da ancestralidade pessoal do médium, e a iniciação é o elo entre ambos. Assentamento e Mão de Faca: o assentamento fixa a força do espírito; a mão de faca concede ao sacerdote o poder de alimentar essa força com o sacrifício. 2.2 A Ética da Ação Na Quimbanda, não existe a busca pela “evolução espiritual” nos moldes kardecistas. O foco é a vida presente, a transformação concreta. O poder dos Exus e Pombagiras é imanente: nasce da troca, da oferenda, do ato. 3. Autoridade, Hierarquia e Diferença A Quimbanda afro-gaúcha possui uma hierarquia complexa, em que autoridade, experiência e ancestralidade se entrelaçam. Coexistência dos Cultos: muitos terreiros abrigam Batuque, Umbanda e Quimbanda sob o mesmo teto, preservando distinções simbólicas e estéticas (Bernardo, 2021). Hierarquia Viva: a autoridade circula entre pessoas e entidades — pais e mães de santo, filhos mais antigos e as próprias entidades chefes. Curvar-se diante de um Exu é também reverenciar o poder da linhagem espiritual. 4. O Enigma Gaúcho: Exposição e Reconhecimento A Quimbanda é declaradamente cultuada no Rio Grande do Sul — um fenômeno raro no Brasil, onde historicamente foi marginalizada. Vitalidade e Números: em 2010, cerca de 28% das casas afro-gaúchas declararam praticar a Quimbanda (Giumbelli & Almeida, 2021). Visibilidade: rituais, fotografias e o uso de mídias digitais ampliaram o reconhecimento público da religião.   Exus e Pombagiras são assumidos como agentes de transformação e senhores do liminar, convertendo o que é rejeitado em potência criadora. 5. A Força Inovadora da Tradição Afro-Gaúcha A Quimbanda afro-gaúcha é um testemunho de resistência, criatividade e autonomia. Sua teologia é voltada à ação, ao poder ancestral e à resolução dos desafios da vida concreta. Ao transformar o estigma em força, ela afirma uma identidade afro-gaúcha original e viva, que continua a se expandir e reinventar. Genealogia ancestral na Quimbanda da Rama dos 4 Caminhos Sementes Despertas: A Ancestralidade como Raiz Viva Vivemos em um país miscigenado, onde o apagamento histórico dos povos originários e das populações escravizadas impossibilitou a preservação da memória de inúmeros antepassados. Negros e indígenas escravizados foram privados de seus nomes de origem e submetidos a um processo de embranquecimento cultural, o que ainda hoje representa uma barreira para o resgate histórico, cultural e religioso dessas linhagens. Durante a pesquisa de minha árvore genealógica, deparei-me com registros que mencionavam apenas o primeiro nome dos escravizados, revelando uma cultura em que esses homens e mulheres eram tratados como propriedade, e não como pessoas com direito à linhagem. Em diversos períodos da história, observa-se um processo de rebatização, no qual os escravizados eram batizados por seus senhores, recebendo o sobrenome de seus algozes. Essa prática — conhecida como compadrio — servia como instrumento de controle, mascarando o cerceamento de direitos sob a falsa ideia de integração familiar. Tal mecanismo foi amplamente utilizado pelos escravocratas em momentos cruciais, como na promulgação da Lei do Ventre Livre, ou em contratos de trabalho vinculados a empréstimos para alforria, que impunham anos de servidão em troca da própria liberdade. Na Rama dos Quatro Caminhos, o resgate da árvore genealógica é um ato sagrado de reconstrução da memória,

Aspectos teológicos e psicológicos dos rituais na quimbanda gaúcha

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

Aspectos teológicos e psicológicos dos rituais na quimbanda gaúcha Um ritual na Quimbanda segue uma estrutura de procedimentos que culmina em uma experiência com o sagrado, promovendo transformações profundas no inconsciente e reverberando emocional e psicologicamente no iniciado. Simbologia e psicologia do ritual na quimbanda gaúcha Ao longo do meu processo de pesquisa sobre a Quimbanda gaúcha e outras tradições, uni uma perspectiva hermenêutica aos estudos, o que me possibilitou formular algumas observações que considero de extrema importância no processo ritual de culto a Exus e Pombagiras dentro da Quimbanda. Todo ritual movimenta forças e energias que reverberam de forma emocional, catártica e integradora, culminando na transformação esperada. Sob a ótica da psicologia da religião, essas forças se relacionam com estruturas arquetípicas presentes nas profundezas do inconsciente, as quais são acessadas de maneira consciente pelo sacerdote e pelo iniciado por meio dos rituais. Esses, por sua vez, são compostos por diversos elementos simbólicos que funcionam como canais de acesso a tais estruturas, forças e energias — muitas vezes associadas a atributos das divindades cultuadas ou dos espíritos ancestrais evocados. De forma geral, o ritual é o meio de acessar e mover essas forças e energias em direção aos aspectos da vida que buscamos aprimorar. Exu e Pombagira são agentes dentro desse contexto, canalizando, redirecionando, organizando e reorganizando essas forças e energias em nossa existência. A terra, uma caveira, uma semente — elementos que, em conjunto, podem, por exemplo, evocar forças ancestrais, dependendo da forma como são organizados e ativados no ritual. Da mesma maneira, um tridente de Exu e Pombagira cravado na terra evoca a força ancestral dessas entidades. Em Exu e Pombagira há uma potência de romper fronteiras: Exu é o senhor dos caminhos entre os humanos e as divindades, o canal por onde todas as forças transitam. Podemos dizer, portanto, que sua energia faz emergir do inconsciente as potências associadas a todas as divindades. Além disso, Exu é o senhor do espaço liminar — a zona de manifestação das forças ancestrais, primordiais e divinas. Quando dizemos “Sem Exu não se faz nada”, é precisamente a esse potencial de manifestação, realização e comunicação que estamos nos referindo. ALERTA! Vale um alerta importante! Manipular elementos simbólicos sem a força de Exu e Pombagira dentro da Quimbanda pode ser extremamente arriscado. Nossos ancestrais tutelares possuem as ferramentas necessárias para conduzir e equilibrar as energias movimentadas; sem a atuação deles, corre-se o risco de sucumbir a forças que não se é capaz de suportar. O quimbandeiro pode facilmente cair nas armadilhas da vaidade e da prepotência. No âmbito psicológico, há o risco de vivenciar estados de dissociação, ficando “fora de si”, e, sem a presença de um sacerdote e de uma estrutura adequada para auxiliar o retorno à consciência, a pessoa pode se tornar vulnerável a ataques espirituais. No plano físico, é comum observar comportamentos de exagero se manifestando, e há inclusive registros de mortes causadas por explosões de pólvora ou líquidos inflamáveis, além de casos de pessoas que contraíram infecções graves ao manipular terras de cemitérios sem os devidos cuidados. Por isso, na Rama dos 4 Caminhos, a hermenêutica é uma regra fundamental. O iniciado deve mergulhar em estudos que lhe proporcionem uma compreensão profunda do próprio processo iniciático, garantindo segurança além do conhecimento adquirido. Um exemplo prático é a manipulação de ervas, que exige extrema cautela, pois muitas delas são tóxicas e perigosas, podendo causar alergias severas e até mesmo levar à morte. A regra é clara dentro da nossa Rama: “Nada sei, por isso sempre buscarei… mais conhecimento, mais sabedoria, mais saúde, mais prosperidade e mais discernimento.” Teologia do ritual na quimbanda gaúcha Vamos identificar na Quimbanda gaúcha diversos entrelaçamentos entre tradições, o que confere a ela uma cosmologia vasta e, ao mesmo tempo, de difícil sistematização. Em sua gênese, a Quimbanda gaúcha passa por um processo de transição a partir da tradição da Umbanda, na qual Exus e Pombagiras, até então, respondiam hierarquicamente a Caboclos e Pretos-Velhos. Sob a tutela de Bará e de outros orixás ou voduns da rua, como Ogum Avagã, Oyá Timboá e Oyá Dirã, essas entidades passam a atuar diretamente nos trabalhos espirituais de defesa e demanda das terreiras. Assim, podemos perceber que Exu e Pombagira ampliam seus territórios de ação e assumem o papel de mediadores entre tradições, ancestrais e divindades, como se recebessem as chaves das porteiras que separam — e ao mesmo tempo conectam — as fronteiras sagradas. Encontramos diversos pontos de Quimbanda que expressam essas trocas e aproximações, inclusive entre Bará e os Exus da Quimbanda. Vejamos alguns exemplos: Se é Bará eu nãoSe é Exú também nãoEu só sei que ele venho de láPara trazer a proteção Bará da rua, Bará exúBara da rua, Saravá Destranca rua No meu castelo tem 7 guri7 guri que trabalha pra Bará7 guri que trabalha pra Exú O sino da igrejinha faz belém-blém-blomDeu meia-noite, o galo já cantouSeu Tranca-Rua que é dono da giraOi, corre, gira, que Ogum mandou Seu Omulu aêSeu Omulu aáAtotô das almasSeu Omulu aêSalve, salve, salve a kalunga A relação com a Kalunga também merece destaque especial, pois revela um importante entrelaçamento com a cosmologia bantu bakongo. Nessa tradição, Kalunga representa a linha divisória entre Nseke e Npemba — o limite que separa o visível do invisível, a vida da morte, o dia da noite. É a fronteira simbólica onde as energias transitam entre os mundos, marcando o ponto de passagem e transformação das forças espirituais. Ao nos aprofundarmos no cosmograma da Dikenga, encontramos uma vasta rede de significados teológicos, cosmológicos e filosóficos, que ampliam a compreensão sobre o espaço em que Exu e Pombagira se movem. Assim, percebemos que a força dessas entidades não atua apenas entre planos espirituais distintos, mas também entre estados de consciência, equilibrando o trânsito entre o nascimento e a morte, o mundo material e o espiritual, a ordem e o caos criativo. A figueira, o maior e mais potente axis mundi da quimbanda gaúcha A figueira, em muitas tradições afro-brasileiras, é reconhecida

Árvore genealógica como pilar iniciático na Quimbanda Gaúcha da Rama dos Quatro Caminhos

Quimbanda em Porto Alegre - Culto a ancestrais em Porto Alegre

Árvore genealógica como pilar iniciático na Quimbanda Gaúcha da Rama dos Quatro Caminhos O resgate histórico dos ramos da minha família constitui as bases fundantes da Rama dos Quatro Caminhos como tradição — algo que se entrelaçou diretamente ao meu processo iniciático na Quimbanda Gaúcha. Meus ancestrais tutelares, a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra, assim como o Senhor Caveira (encantado) e o Senhor João Caveira, só se manifestam dentro de uma quebra das fronteiras colonizadoras que apagaram a identidade e a história de muitos dos meus antepassados. Como todo mestiço brasileiro, sou fruto de mundos e dimensões de realidades antagônicas, pois, em um mesmo espaço, conviviam forças opostas — senhores de fazenda escravocratas e negros e indígenas escravizados. O choque de retorno às raízes antepassadas desfaz a ilusão romântica de um passado sem culpa. E é com essa visão de mundo em processo de correção que, da escuridão da alma, passam a emergir forças adormecidas, que se tornam vias de reconexão com uma ancestralidade viva, carregada na memória que pulsa em nossas veias. Essa nova visão de mundo, agora desmistificada, amplia o nosso alcance espiritual — não como uma habilidade ou capacidade adquirida como prêmio por um grau iniciático conquistado, mas pela reintegração a uma comunidade ancestral, na qual deixamos de ser um e nos tornamos muitos: uma família que ultrapassa o tempo e conecta memória, natureza, vida e morte, visível e invisível, sagrado e profano, dia e noite, positivo e negativo. É por meio desses ancestrais que as fronteiras da existência deixam de ser físicas e passam a ser espirituais, onde reinados são construídos com as pedras da memória, estradas são abertas pelas raízes ancestrais, e a vida se torna o ponto de convergência presente entre o passado e o futuro. Nossos ancestrais são os agentes mágicos, sábios e líderes nessa retomada ancestral e, como ancestrais, pertencem a este território — o que nos permite resgatar identidade e pertencimento. Por isso, na Rama dos Quatro Caminhos, é pilar do processo iniciático que o neófito mergulhe em uma jornada de resgate da própria ancestralidade, em que o mapeamento histórico e genealógico serve como bússola e guia do caminho. A quimbanda como resgate de pertencimento Quando falamos de Quimbanda, Umbanda, Batuque, Candomblés e demais religiões e tradições afro-indígenas, estamos nos inserindo em um território de ancestralidades, onde costumes, comportamentos, realidades sociais e religiosidades estavam intensamente entrelaçados à natureza — ou eram vivenciados em contextos de extrema pobreza e marginalização. Não é possível imaginar uma ancestral Pombagira que traga, em seu bojo de sabedoria, a imagem de uma mulher branca europeia, moldada pelo padrão de estética branca. Se os detentores dos saberes de feitiçaria eram negros e indígenas, a estética, os costumes e as realidades eram outros. Roupas simples, por vezes em trapos, eram os únicos tecidos disponíveis para cobrir o corpo. Por isso, imaginar que uma Pombagira — um espírito ancestral — exija vestes de alto valor, distantes da realidade que viveu e da realidade do iniciado, não encontra ressonância na ancestralidade afro-indígena. É importante lembrar o aspecto do custo: certas dores são privilégios. É melhor chorar de tristeza com a barriga cheia do que chorar de fome. A Quimbanda é pé no chão, mão nas raízes, é o suor sofrido sob o sol causticante daqueles que abriram caminhos de realização. A Quimbanda é entrega — onde o medo grita e o sangue cala. Não há território mais visceral do que o chão onde Exu e Pombagira se manifestam. Por isso, esse é um espaço em que o iniciado é reintegrado a sua ancestralidade, um território que perturba as sombras da alma, mas também traz à luz da consciência a presença do sagrado. O entrelaçamento da Quimbanda Gaúcha com a Rama dos 4 Caminhos Após decidir que me iniciaria na Quimbanda, busquei tradições que me permitissem reconectar com meus ancestrais de forma mais verdadeira. Essa busca me levou às tradições de Quimbanda de influência bantu, especialmente às tradições Bakongo. No entanto, a centralização dos sacerdotes no eixo São Paulo–Rio de Janeiro se tornou um grande dificultador. Foi então que decidi revisitar a tradição da Quimbanda Gaúcha sob uma nova perspectiva, pois eu mesmo havia erguido uma grande barreira entre mim e essa possibilidade. Nesse momento, os ancestrais começaram a sinalizar que esse era um caminho genuíno — para mim e para eles. Aprofundando minha busca, procurei em minha família algum sacerdote de Quimbanda e descobri que um primo distante de meu pai poderia me iniciar. Assim, em setembro de 2025, fui até Arroio do Meio para ser iniciado pelas mãos de Antônio Gilberto Ferreira, meu primo de segundo grau, um senhor de 75 anos, iniciado pela saudosa Mãe Zila de Xapanã. Mãe Zila carregou mais de 52 anos de culto aos Orixás, Exus e Pombagiras, tendo recebido e sustentado seu legado com dignidade e fé. Curiosamente, Mãe Zila viveu no mesmo bairro onde cresci — uma ironia do destino, ou, melhor dizendo, obra de Exu. Eu havia colocado também uma grande barreira entre mim e meu bairro de infância, mas foi justamente de lá que o axé, a força e a tradição chegaram até mim pelas mãos de Gilberto. Todo esse processo iniciático se entrelaçou em uma jornada de resgate ancestral — em terras onde muitos dos meus antepassados viveram, morreram e estão enterrados. Isso me traz um valor de legado incalculável, impossível de ser medido em outra experiência. Ainda há muito o que explorar e resgatar em Arroio do Meio, dentro da construção da Rama dos Quatro Caminhos, pois é uma região de muita mata — e o Reino das Matas é um dos pilares de nossa tradição. Foi ali que muitos antepassados escravizados e ex-escravizados viveram, sobreviveram e abriram caminhos, para que, nesse entrelaçamento de destinos, eu viesse ao mundo e retornasse — para, no presente, dar início à nossa tradição. Um fundamento plantado na quimbanda da Rama dos 4 Caminhos Na Rama dos Quatro Caminhos, realizamos diversos rituais de integração com a ancestralidade.

Quanto custa uma iniciação na Quimbanda? Uma crítica social

Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Quimbanda Gaúcha

Quanto custa uma iniciação na Quimbanda? Uma crítica social Antigamente era diferente Quando escutamos “antigamente”, nos vemos em uma zona de conflito entre tradições, entre antigos e novos sacerdotes, mas, acima de tudo, em um conflito entre a história feita e a história em construção — e, no meio disso tudo, a preservação da ancestralidade em suas diversas perspectivas: cultural, genealógica e religiosa. Há uma disputa por protagonismo, autoridade, visibilidade e reconhecimento. Escutei de um babalorixá do Batuque gaúcho que, em seu processo de iniciação — que levou sete anos —, um dos ritos exigia o sacrifício de um peixe vivo sobre um otá. Hoje, essa mesma mãe de santo utiliza o sumo de ervas no lugar do sacrifício. Segundo o relato, isso ocorre porque, na época, era possível conseguir peixes vivos por intermédio de pescadores na beira do Guaíba; hoje, isso se tornou inviável, para não dizer impossível. Dentro desse contexto, até podemos compreender a modificação de um ritual tão importante, mas a preservação do fundamento deve ser passada adiante como prioridade, e não como alternativa. Algo que esse mesmo babalorixá diz não ver acontecendo em diversos ritos e comunidades batuqueiras — e o mesmo se observa dentro da Quimbanda tradicional gaúcha. Na minha busca pela iniciação na Quimbanda, tive a fundamentação dos assentamentos dos meus tutelares — a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra — feitos da forma como os assentamentos de Exu e Pombagira eram estruturados há mais de cinquenta anos. Isso me permitiu perceber a desproporção dos assentamentos feitos hoje dentro do que se chama de Quimbanda tradicional gaúcha. Muitos dizem que a quantidade de itens fortalece o assentamento. Eu não posso afirmar que sim nem que não, mas o que tenho aprendido pela experiência de cultuar Exu e Pombagira é que o que define um assentamento como morada de poder de um ancestral é se ele responde. O assentamento pode conter ouro e diamantes, mas, se não responde, ali não é a morada de um ancestral — seja Exu, Pombagira, caboclo ou preto-velho. Essa resposta pode se manifestar de diversas formas: por sonhos, realizações materiais, visagens, sons — enfim, pela presença palpável dos ancestrais. Um assentamento simples, mas fundamentado, estabelece um canal efetivo entre o iniciado e o ancestral, tornando-se uma verdadeira morada de poder, especialmente quando o iniciado mantém o culto vivo. E é aqui que identificamos um pilar essencial: é na simplicidade que reside a garantia da fé verdadeira. O que alimenta o elo entre o iniciado e o ancestral não é o luxo do assentamento, mas a regularidade do culto, a manutenção ritualística simples, porém resignada. Hoje não vemos fundamentos adaptados, mas fundamentos reinventados Não vemos mais fundamentos adaptados; vemos novos fundamentos criados. E não tenho a pretensão de julgar se esses novos fundamentos são verdadeiros ou eficazes. Eu mesmo defendo a criação de ritos, interpretações de mitos e novos processos iniciáticos, mas também defendo a preservação da tradição, que deve ser a prioridade e o coração pulsante do culto. Na Rama dos 4 Caminhos, buscamos uma relação mais direta com o Reino das Matas, o que nos leva a assimilar diversos conhecimentos ritualísticos, validados junto aos ancestrais e testados em sua efetividade pela comunidade. Mas, no centro disso tudo, pulsa o coração dos assentamentos fundamentados dentro da tradicional Quimbanda gaúcha. Meu feitor na Quimbanda, meu primo de segundo grau, Antônio Gilberto Ferreira, um senhor de 75 anos, costuma dizer: “Antigamente, a orientação era cortar para o Exu e a Pombagira tutelares uma vez por ano. Hoje, um iniciado parece mais um sócio de um matadouro.” A relação com Exu e Pombagira é mantida quase exclusivamente pelo sangue, enquanto padês, comidas e bebidas simples são descreditadas como oferendas aceitas pelos ancestrais. Quando algo é demais, perde o valor; o excesso se torna soberba, arrogância e, por fim, prepotência — uma armadilha perigosa para qualquer quimbandeiro. Quando o disponível era a fenda para o invisível Durante minha pesquisa, identifiquei que os elementos centrais nas fundamentações de ancestrais Exus e Pombagiras eram de acesso simples e, muitas vezes, sem custo para os iniciados. O uso de sementes, terras, ossos, pedras, água, ervas e o sacrifício de um galo, galinha ou até mesmo um pombo eram os principais elementos utilizados. As próprias guias eram feitas com esses materiais naturais. Talvez os elementos de metal fossem os únicos que exigiam algum custo, pois eram difíceis de conseguir e caros — além de um ferreiro ser inacessível às camadas mais pobres. Diante disso, é inconcebível imaginar colocar ouro, prata e pedras preciosas em um assentamento. Não que o ancestral não mereça, mas isso não condiz com a realidade das classes populares — nem hoje, nem nas épocas fundantes do culto aos ancestrais brasileiros. A abolição da escravidão foi em 1888 — não é tão distante assim. Era um esforço sem precedentes um escravizado comprar sua alforria, para não dizer um milagre. Imaginar hoje uma política religiosa baseada em exageros contraria as bases fundantes do culto aos ancestrais e à natureza como via de acesso. Não à toa, chamamos de raízes ancestrais. Onde há exagero, falta simplicidade; onde falta simplicidade, falta essência. Quando o sal do suor era o pagamento de maior valor Hoje, não é o suor que define um iniciado, mas a aquisição. Criaram-se sistemas e processos que parecem uma escada comprada para o paraíso. E a história já nos mostrou: bolsos pesados caem. A ganância, a vaidade e o egoísmo moldam um caminho solitário rumo ao abismo. Isso não é uma moral cristã ou kardecista — as bases das tradições afro-indígenas se firmam na coesão comunitária, na integração com a natureza e no princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito. Muitos, porém, justificam práticas bélicas e capitalistas sob o argumento de que as tradições ibéricas também influenciaram as macumbas, como a Quimbanda e a Umbanda. Mas isso é mentalidade colonizadora — e é preciso estar muito cego para não perceber. Se assumíssemos os pilares ético-filosóficos das tradições afro-indígenas

As raízes ancestrais estão profundamente entrelaçadas às memórias da alma. Nutrir a memória é cultuar os ancestrais.