Quimbanda em Porto Alegre e o culto a ancestrais e antepassados

Ao mesmo tempo em que vemos uma explosão de pessoas buscando a Quimbanda para ter acesso a feitiços com foco em amarrações e destruição, percebemos surgir um movimento que busca, no culto a Exus e Pombagiras, o resgate da relação com a ancestralidade e a ressignificação com os antepassados.

Não busco separar tradições entre certas e erradas, nem entre fundamentadas ou não, pois cada tradição possui suas bases fundantes. Se esses princípios causam efeitos positivos ou negativos, e se de alguma forma ferem valores éticos, cabe às leis dos homens e às leis universais espirituais julgar e punir o que couber a cada um.

Acredito que exista uma lei evolutiva espiritual, observável em tradições bantas, por exemplo, nas quais a coesão comunitária, a integração com a natureza e o princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito são pilares fundamentais. Da mesma forma, não “agencio” os ancestrais e antepassados para que utilizem seu poder de ação a fim de prejudicar outros espíritos, sejam encarnados ou desencarnados.

Acredito, sim, que existam diversas categorias de espíritos que podem ser manipulados para fins negativos, mas, na Rama dos 4 Caminhos, a coesão espiritual é um pilar que nos fortalece a cada ação, interna ou externa.

Pensando em tudo isso, busco compartilhar perspectivas, saberes e conhecimentos, para que pessoas em busca de uma experiência semelhante encontrem um ponto de convergência na Rama dos 4 Caminhos, onde desenvolvemos possibilidades de resgate do pertencimento espiritual, comunitário e ancestral.

Como a Rama dos 4 Caminhos pode ajudar você a reencontrar a sua ancestralidade

Aqui, na rama, desenvolvemos possibilidades de construção de pertencimento que, em sua quase totalidade, contemplam a busca pelo saber — seja no mapeamento genealógico, no desenvolvimento de uma visão hermenêutica da ancestralidade, nas imersões rituais ou na partilha de saberes do núcleo de estudos e pesquisa.

Resgate da árvore genealógica e ancestral

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

É interessante perceber que foi justamente na busca pela história dos meus ramos familiares que resgatei a minha ancestralidade e que os antepassados e ancestrais iniciaram uma retomada de coesão espiritual dentro da família. Hoje, não sou o único dentro da família que tutela a rama: outros ancestrais já se manifestam e começam também a retomar essa coesão espiritual.

A busca pela história da família, dentro de uma perspectiva genealógica, é outro pilar da Rama dos 4 Caminhos, pois, a partir dela, cavamos não apenas nas profundezas da nossa relação com as sombras familiares, mas também com as sombras de toda a família. É nesse processo que vivenciamos diversos choques de retorno, o que é fundamental para a conscientização das dívidas e responsabilidades herdadas de nossos antepassados.

Utilizo minha própria família como exemplo: um dos ramos foi escravocrata, suprimindo a existência de outros. Uma série de atrocidades se entrelaçou em escolhas que pavimentaram a nossa existência presente. Precisamos resgatar a história daqueles esquecidos, apagados, assassinados — que sofreram diversas crueldades das quais muitos de nossos familiares participaram como executores — e cabe a nós recontar essa história, ressignificando nossa relação com o passado. Assim como no meu caso, encontrei também diversos familiares negros que foram escravizados e ex-escravizados, que resistiram a toda essa onda obscura da bestialidade humana e que também pavimentaram os caminhos para a existência da minha família.

Nesse processo, os antepassados começaram a se manifestar, pedindo oferendas; os ancestrais também passaram a se manifestar — como Exus, Pombagiras, Encantados —, iniciando essa retomada de coesão ancestral que hoje é base e pilar fundante da Rama.

Aqui, na Rama, você é instigado, estimulado e conduzido a esse resgate genealógico, que remodela profundamente as relações familiares e com os antepassados, pavimentando o presente para que os ancestrais passem a se manifestar em sua vida.

Construir uma visão mais hermenêutica da ancestralidade

O saber é um processo em constante construção, o que nos conduz a uma ampliação de conhecimentos que nos ajuda a aprofundar e construir uma compreensão mais plena das experiências com a ancestralidade.

Na Quimbanda Gaúcha, por exemplo, em um primeiro momento pode parecer difícil mapear uma cosmologia, já que a tradição se origina de um movimento de disrupção, no qual a linha da esquerda se descola da Umbanda e se fundamenta, em grande parte, em saberes e fundamentos do Batuque. Mas, ao mesmo tempo em que isso pareça difícil, acaba ocorrendo uma fusão ampla, já que o Batuque, diferente do Candomblé — onde as nações priorizaram manter as tradições restritas a cada uma delas —, apresenta uma fusão entre as nações. Assim, podemos ver, por exemplo, voduns cultuados junto a orixás. Essa fusão de tradições é a atmosfera onde a Quimbanda Gaúcha surge; por isso, vemos nos pontos cantados antigos uma forte relação de Exus e Pombagiras com orixás e voduns.

Um exemplo muito evidente dessa fusão é o ponto:

“Bará da rua, Bará Exu, Bará da rua, saravá Destranca Rua.”

No Batuque, o Bará da Rua é o Bará Lodê, apontado como um Bará responsável pela proteção da casa, junto com Ogum Avagã, que é um vodum. Os batuqueiros mais antigos dizem que Bará Lodê e Ogum Avagã utilizam os Exus e Pombagiras para diversos trabalhos de proteção da casa, o que reforça essa relação de troca e compõe uma cosmologia muito ampla.

É através do desenvolvimento de uma visão mais hermenêutica que buscamos resgatar a historicidade dos cultos, bem como uma perspectiva teológica, que também auxilia muito no entendimento da nossa relação com o sagrado, além da importância e da estrutura ritual.

Não posso deixar de citar a psicologia da religião, onde nos aprofundamos na relação do culto aos ancestrais em uma dimensão psíquica, compreendendo a importância da ancestralidade no desenvolvimento de nossas virtudes e potencialidades rumo a um estado de espírito pleno.

Aqui, na Rama dos 4 Caminhos, o saber é construído a partir da reflexão da vivência sob uma ótica multifocal, para abordar a experiência da forma mais completa possível.

Participar do Núcleo de estudos e pesquisa ancestral

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena, fundamentado no reconhecimento e na valorização dos saberes ancestrais. Partimos da consciência de que somos feitos de muitas camadas — de tempo, de história, de memória e de espiritualidade. Estudar o passado, para nós, não é apenas um gesto intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.

Nosso trabalho se orienta por leituras, práticas e partilhas coletivas que buscam explorar temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados, mitologias africanas e indígenas, cosmogonias e cosmologias tradicionais, além de teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos o saber que nasce da oralidade, da experiência direta, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, nas casas, nos terreiros e nos territórios.

Mais do que um grupo de estudos teóricos, somos um espaço de pesquisa afetiva e espiritual, onde cada integrante traz consigo sua vivência, sua linhagem e seu chão. A ancestralidade, para nós, não é um conceito abstrato — é presença, é força ativa, é guia. Por isso, buscamos compreender não apenas os mitos ou os rituais, mas os modos como os povos tradicionais constroem sentidos para a vida, para o sagrado, para a cura e para o mundo.

Nosso campo de interesse abrange:

  • Estudos sobre ancestralidade e linhagens espirituais nas religiões afro-indígenas;
  • Práticas de culto, reverência e comunicação com os antepassados;
  • Genealogia espiritual e biográfica como caminho de reconexão;
  • Mitologias, cantos, símbolos e narrativas fundantes das tradições;
  • Cosmogonias e cosmologias dos povos de terreiro e de tradição oral;
  • Teologias negras e indígenas que emergem dos próprios corpos e territórios sagrados;
  • Diálogos entre psicologia da religião, filosofia ancestral e saberes populares.

 

Nosso compromisso é honrar as tradições que nos formam, aprofundar a escuta do mundo espiritual e fortalecer os vínculos entre pessoas, casas e linhagens que caminham com seriedade, ética e responsabilidade no culto aos ancestrais. Queremos aprender com as mais velhas e os mais velhos, com as pedras, com os rios e com os sonhos. E queremos fazer isso em conjunto, em comunhão e partilha.

Participando de rituais na Rama dos 4 Caminhos

Quimbanda Gaúcha, Quimbanda em Porto Alegre. Culto a ancestrais e antepassados.

Na Rama dos 4 Caminhos, todos os rituais, neste momento, são de caráter reservado. Existem celebrações abertas ao público, mas, ainda assim, é necessária uma permissão prévia para a participação, pois há um preparo ritual específico para acolher qualquer pessoa na Rama — seja um novo batizado, um iniciado ou um convidado.

O oráculo pode ser consultado para identificar a linha de trabalho que orientará cada rito. É a partir dessa revelação que se definem desde a coleta das ervas até a confecção dos elementos rituais. Por essa razão, há a necessidade de manter os ritos em um formato mais restrito, pois eles envolvem aspectos íntimos da ancestralidade dos participantes — o que, além de carregar fundamentos próprios, também diz respeito à privacidade espiritual de cada um. Esse formato favorece uma conexão ancestral mais profunda, permitindo uma imersão completa na atmosfera e nas energias que se manifestam durante os trabalhos.

Em muitos momentos, os ancestrais tutelares da Rama oferecem orientações diretas, o que possibilita uma condução ainda mais precisa dos rituais. No entanto, isso não significa que eles se manifestem em todas as ocasiões. A presença e atuação dos ancestrais dependem de sua própria vontade e da necessidade espiritual do trabalho. Diversos rituais da Rama são realizados em dinâmicas coletivas — como a maceração de ervas, por exemplo — ou na confecção de garrafadas, processos que muitas vezes demandam mais a ação humana consciente do que a intervenção direta dos ancestrais em terra.

Para saber mais sobre nossos trabalhos e atividades, você pode entrar em contato com a Rama dos 4 Caminhos por meio dos perfis sociais oficiais ou pelo e-mail ramados4caminhos@gmail.com. Teremos alegria em responder e orientar com mais informações.

Uma tradição fundamentada na quimbanda tradicional gaúcha

Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Quimbanda Gaúcha

É fundamental mergulhar na imensidão dos cruzamentos de saberes das tradições afro-gaúchas para compreender a amplitude do que é a Quimbanda Gaúcha e o seu vasto espectro teológico, ritual, litúrgico e histórico.

A Quimbanda no Rio Grande do Sul, diferente de outras tradições quimbandeiras do eixo Rio–São Paulo — que mantiveram proximidades com influências Congo-Angola e com as antigas macumbas cariocas, fortemente marcadas pela Cabula e pelos Calundus —, buscou nas fundamentações do Batuque a riqueza de elementos que formam sua própria estrutura religiosa.


Diversas casas tradicionais de Quimbanda recorreram ao culto ao orixá Bará como base para estruturar assentamentos e oferendas a Exus e Pombagiras. Essa herança é evidenciada em estudos como “Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas”, de Rodrigo Marques Leistner, onde sacerdotes como Pai Eliseu do Ogum e Pai Vinícius de Oxalá são citados como lideranças que contribuíram para a formatação da Linha Cruzada. Nesse contexto, casas de Batuque que já incorporavam práticas de Umbanda iniciaram o cruzamento de fundamentos, dando origem às bases fundadoras do culto a Exu e Pombagira em uma nova estrutura religiosa independente — na qual o ato sacrificial, o corte, passou a fundamentar os assentamentos dessas entidades.

Cresci na maior periferia do Rio Grande do Sul, em um bairro chamado Restinga, internamente dividido em dois hemisférios: Restinga Nova e Restinga Velha. Foi ali que tive meu primeiro contato com as tradições afro-diaspóricas gaúchas — o Batuque, a Quimbanda e a Umbanda —, e onde fui benzido inúmeras vezes por uma benzedeira que morava próxima à minha casa (preciso ainda descobrir o nome dessa mulher).

Durante a adolescência, frequentei muitas sessões e festas de Quimbanda na Restinga, sempre fascinado pela musicalidade, pela irreverência de Exu e Pombagira, e pela atmosfera de confraternização entre amigos e desconhecidos — um verdadeiro momento de comunhão, de fazer inveja a muita igreja.

Com o tempo, porém, meu olhar mais esotérico começou a se afastar desse encantamento. Passei a me desmotivar ao ver a banalização com que muitas pessoas recorriam à Quimbanda, pedindo vinganças, forçando paixões ou atacando quem se colocasse em seus caminhos. Ver animais sendo sacrificados com esses propósitos também colaborou para o meu distanciamento.

Esse afastamento se intensificou quando mergulhei na doutrina espírita — o que, mais tarde, percebi ter sido uma armadilha, pois é evidente o preconceito e a ignorância do movimento espírita em relação às tradições afro-indígenas brasileiras.

Anos depois, quando conquistei minha independência e deixei o bairro, prometi a mim mesmo que nunca mais moraria na Restinga, por conta das constantes guerras entre gangues e facções, além da brutalidade que atravessa toda periferia brasileira. Foi nessa mistura de desilusões, medos e desconhecimento que mantive minhas perspectivas espirituais e iniciáticas afastadas do lugar onde cresci.

Mas o destino — ou melhor, Exu, e especialmente a Senhora Maria Mulambo Anciã — corrigiu a rota da jornada, ressignificando completamente minha relação com o passado e com a Quimbanda tradicional gaúcha.

Após muitas tentativas frustradas de buscar uma iniciação em tradições de Quimbanda Congo-Angola, tive um súbito insight de desilusão e me perguntei:

“E se eu primeiro buscar uma iniciação na Quimbanda tradicional gaúcha? E se, na minha árvore genealógica, houver algum macumbeiro que possa me iniciar?”

Conversei com meu pai, que me orientou a procurar uma prima de segundo grau, Aida. Ela, no entanto, não podia me passar a mão de faca nem assentar meu Exu e Pombagira, pois era iniciada apenas no Batuque. Mas me indicou outro primo de segundo grau: Antônio Gilberto Ferreira.

E foi então que o mundo não apenas girou — ele capotou.

Antônio Gilberto já havia aparecido na minha pesquisa genealógica, e eu até havia tentado contato com ele pelo Instagram, sem sucesso. Mais tarde descobri que ele simplesmente havia esquecido a senha! Felizmente, a prima Aida manteve o contato e me passou seu telefone.

Depois de cerca de dois meses de preparação e conversas, fui até Arroio do Meio, terra de muitos dos meus antepassados. Foi lá que a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra foram assentados, e ali recebi a mão de faca, dentro da nossa tradição.

Mas onde entra a Restinga nessa história?

Antônio Gilberto foi iniciado pela saudosa Mãe Zila de Xapanã, sacerdotisa que deixou um legado de mais de 52 anos de culto às tradições afro-gaúchas. Mãe Zila viveu na Restinga — o mesmo bairro onde cresci — e foi ali que construiu todo o seu legado, formando uma grande família religiosa.

Minha iniciação, minha tradição e minha força ancestral, portanto, vêm de uma sacerdotisa exemplar, que criou suas raízes justamente no bairro que eu havia prometido nunca mais pisar.

As raízes ancestrais nos entrelaçam de formas inimagináveis. A nós, cabe apenas assumir a responsabilidade de guardiões — zelando pelos saberes, pelos fundamentos e pela continuidade da tradição.

Não há barreira que Exu e Pombagira não ultrapassem. Mas, para isso, é preciso coragem — coragem para vencer até mesmo a nossa moral enrustida, travestida de falsa sabedoria.

Foi nesse cenário que nasceu a Tradição da Rama dos 4 Caminhos: fruto da ressignificação, do legado familiar, da terra dos antepassados e do retorno às origens.

O reino das matas como pilar na quimbanda da Rama dos 4 Caminhos

Este conteúdo integra uma série de estudos e reflexões sobre a Quimbanda. Dentro desse campo, os reinos se apresentam como um dos aspectos mais instigantes da tradição, despertando o interesse tanto de iniciados quanto de estudiosos. Entretanto, ao buscar referências em produções sacerdotais ou em pesquisas acadêmicas — sejam elas de antropologia, teologia ou psicologia da religião —, encontramos, em sua maioria, apenas citações breves ou menções passageiras. São raros os materiais que se dedicam a tratar dos reinos com profundidade e densidade simbólica.

Trata-se de um tema vasto e complexo, que exige absorver conceitos, informações e percepções sutis, além de um conhecimento ritual e simbólico profundo. Compreender os reinos é, portanto, mergulhar na própria estrutura da Quimbanda e nos modos como ela organiza o mundo invisível e o mundo vivido.

Logo de início, considero importante partilhar uma visão pessoal: antes de haver o reino, há a região. É na região que se manifestam os reinos, ou melhor, as realidades que se sobrepõem, coexistindo e interagindo sob leis próprias. Diversos exemplos podem ilustrar essa ideia. Os quilombos, por exemplo, dentro de uma mesma região, constituíam reinos autônomos, com economia, normas e religiosidade próprias — e, simultaneamente, disputavam espaço com outros reinos, como os portugueses ou espanhóis. O mesmo ocorre com a rua, onde pessoas de diferentes culturas, religiões e origens constroem regras de convivência e códigos morais próprios, criando uma rede viva de relações e significados.

Da mesma forma, os moradores de rua constituem realidades particulares de trânsito e uso dos espaços públicos, com valores e estruturas de liderança próprias. Assim, em uma mesma região, podem coexistir múltiplas ordens morais, formas de poder, economias simbólicas e práticas religiosas. A região, portanto, precede o reino, pois nela se enraízam as forças e os sistemas que o sustentam.

Essa dinâmica também se revela nos contrastes cotidianos: os bairros boêmios, por exemplo, abrigam espaços onde as regras morais se distendem — bares, festas, prostíbulos, locais de magia ou prazer —, enquanto, no mesmo território, há comunidades regidas por valores cristãos rígidos. Ainda assim, pessoas transitam entre essas realidades, muitas vezes movidas por desejos, ritos de passagem ou necessidades espirituais. Esse trânsito — entre o moral e o profano, o sagrado e o mundano — é uma marca essencial das regiões que sustentam os reinos.

O mesmo princípio se aplica aos ciclos da natureza. Há florestas que despertam à noite, revelando flores e animais adaptados à escuridão, assim como há reinos da boemia que se ativam após o cair do sol, quando as energias do desejo e do prazer se tornam mais potentes. Tudo isso mostra que a região é um campo de forças, onde diferentes reinos se organizam, com agentes, leis e ritmos próprios.

Compreender esse princípio é o primeiro passo para compreender os reinos da Quimbanda.

Imagine, por exemplo, um quimbandeiro no México realizando um rito na calunga pequena. Como seria sua relação com um cemitério marcado por tradições locais de culto aos mortos, enraizadas em cosmologias próprias? Ou pensemos em um quimbandeiro penetrando as matas do Norte e Nordeste do Brasil, onde o culto da Jurema é predominante. Ao entrar na mata do Catucá, em Pernambuco — região associada aos Malunguinhos e considerada um dos pontos mais fortes da Jurema —, ele se depara com forças e entidades que coexistem com as da Quimbanda, compartilhando símbolos e espaços sagrados.

Esses exemplos nos mostram que os reinos não são fixos, mas camadas vivas de realidade que se sobrepõem, dialogam e, às vezes, se confrontam. É nesse entrelaçamento que se revela a natureza profunda da Quimbanda.

Na tradição da Quimbanda Gaúcha, os estudos mais atentos apontam para a figueira como a principal representação do axis mundi — o eixo que liga os mundos. Essa compreensão é de grande relevância, pois ajuda a compor uma cosmologia mais ampla e orgânica da Quimbanda do Sul, ainda tão difícil de mapear.

A figueira é uma morada divina, abrigo de orixás, voduns, eguns, Exus e Pombagiras — entre eles, Pombagira Figueira e Exu Figueira, além das associações com Exu Caveira. No Batuque, diz-se que sua copa é o domínio de Oyá Timboá e Oyá Dirã, divindades da rua e senhoras dos eguns em suas respectivas nações.

Na Rama dos 4 Caminhos, reconhecemos na figueira o símbolo do feminino sagrado — potência geradora, nutridora e transformadora da vida. Historicamente, o poder feminino foi silenciado por estruturas patriarcais que associaram a mulher à transgressão e ao mal, distorcendo sua verdadeira força divina. Para nós, o feminino é a força primordial da ancestralidade, a raiz de onde brotam todas as linhagens e saberes. Assim como a figueira abriga sob suas raízes a vida que germina, ela também gesta os mistérios e os poderes ocultos de nossa tradição.

Muitos sacerdotes de Quimbanda, Umbanda e Batuque relatam que, sob as figueiras do território gaúcho, repousam feitiços e objetos sagrados deixados por antigos negros feiticeiros — alguns deles Pretos-Velhos que dominavam também a arte do feitiço negativo (Jaékel da Rosa, Estefânia, 2019).

Por isso, a figueira é entendida como morada de Exus e Eguns, ponto de trânsito entre o mundo material e o espiritual. Suas cavidades e raízes, muitas vezes ocas, são consideradas portais naturais, e por isso também é associada a Ogum Avagã, cujo símbolo animal é a cobra — habitante desses mesmos espaços subterrâneos.

A partir dessas correlações, compreendemos que a figueira é um eixo entre o visível e o invisível, um espaço liminar onde espíritos de poder — Exus e Pombagiras — realizam o trânsito entre desejo, ação e realização. Também podemos entendê-la como uma estrutura de poder feminino primordial, onde forças espirituais são gestadas e protegidas, tal como uma mãe que guarda e defende seus filhos.

Os Nambiquara, povo indígena do oeste do Mato Grosso e Rondônia, falam da figueira Haluhalunekisu, que existe na abóbada celeste. Essa figueira pertence à mulher-espírito, e em sua copa habita Dauasununsu, o ser sobrenatural que conhece todas as coisas. Para os Nambiquara, essa figueira sustenta o céu, e suas raízes envolvem o mundo dos homens. Os wanintesu, pajés da tradição, sobem por essas raízes para renovar seus poderes espirituais.

Em diversas tradições do mundo, encontramos essa mesma associação entre a figueira e o divino. No budismo, foi sob sua sombra que Sidarta Gautama atingiu a iluminação — assim como outros budas. No hinduísmo, a figueira-de-bengala representa o Trimurti: Brahma (o Criador), Vishnu (o Preservador) e Shiva (o Destruidor). Cada aspecto divino habita uma parte da árvore — Brahma nas raízes, Vishnu na casca e Shiva nas raízes aéreas —, formando um símbolo vivo do equilíbrio entre as forças cósmicas.

Assim, a figueira, tanto nas tradições orientais quanto nas afro-indígenas, se manifesta como a árvore do mundo, eixo que une os mundos, gera e sustenta a vida — e, na Quimbanda, é o portal onde o feminino e o ancestral se entrelaçam em poder e sabedoria.

Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.

Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.

Reino das Matas na Quimbanda - Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Participe, é totalmente gratuito

Núcleo de estudo e pesquisa ancestral

O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.

Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.

As raízes ancestrais estão profundamente entrelaçadas às memórias da alma. Nutrir a memória é cultuar os ancestrais.