Quimbanda e o culto a ancestrais em terras gaúchas
Falar sobre a Quimbanda com um enfoque nas tradições quimbandeiras do Rio Grande do Sul é uma aventura entrelaçada em processos de rupturas e disrupções rituais. Diferente do eixo RJ-SP, onde diversas tradições diaspóricas se mantiveram próximas e, de certa forma, preservadas, no RS verificamos um movimento interno de ruptura de grupos de espíritos que até aquele momento atuavam dentro do escopo dos rituais de Umbanda. Nesse contexto, Exus e Pombagiras estavam limitados à estrutura ritual e teológica da Umbanda. No RS, a tradição predominante sempre foi a de forte influência kardecista, marcada pelo mito fundador do Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado por Zélio Fernandino de Moraes. Essa tradição de Umbanda é fruto de um processo de embranquecimento das tradições afro-indígenas, em que a figura de Exu e Pombagira passou a ser demonizada, tendo seus campos de atuação reduzidos ou totalmente apagados.
Entre as décadas de 1950 e 1960, no RS, observa-se um movimento de ruptura desses agrupamentos espirituais, nos quais o sacrifício de animais passou a integrar o bojo ritual, especialmente nas feituras, abrindo caminho para um processo de inovação nos assentamentos de Exus e Pombagiras. Esse novo movimento ficou conhecido como linha cruzada, por surgir em comunidades que reuniam elementos do Batuque e da Umbanda em um mesmo espaço iniciático. É desse cruzamento que se evidencia a influência do Batuque na formatação dos rituais fundadores da Quimbanda, garantindo-lhe independência enquanto tradição.
O processo de demonização de Exus, Pombagiras e até mesmo de muitos Caboclos e Pretos-Velhos ditos quimbandeiros limitou o campo de ação de espíritos que necessitam de elementos rituais proibidos nos limites da Umbanda popular. Dentro das tradições quimbandeiras, esses espíritos encontraram liberdade e ferramentas para se manifestarem de forma mais genuína, revelando sua força e seus saberes àqueles que, em sua ancestralidade, mantêm ligação com eles.
É consenso em diversas tradições de Quimbanda que Exus e Pombagiras são espíritos de antepassados, ancestrais divinizados, feiticeiros e bruxos de tradições que sobreviveram ao tempo e ao apagamento. Na Quimbanda, eles se apresentam com nomes que identificam agrupamentos de espíritos ligados a funções ou campos específicos de atuação. Em algumas tradições, esses agrupamentos são chamados de falanges; em outras, de comunidades espirituais ou egrégoras. O fato é que esses conjuntos acumulam ritos, símbolos, saberes e até compartilham poder e campo de ação, o que lhes confere culto e, por consequência, relações de poder nas quais os iniciados — descendentes de tradições — ampliam suas fronteiras de atuação.
É importante resgatar, na história formadora do Rio Grande do Sul, a diáspora dos povos escravizados, que em diferentes regiões do Brasil utilizaram diversos artifícios para preservar suas tradições. Cada região adquiriu particularidades nesse processo, seja por meio do sincretismo, seja por fusões de tradições. No Batuque do RS, por exemplo, divindades de diferentes origens são cultuadas no mesmo grupo. Encontramos Voduns cultuados junto a Orixás, compartilhando espaço em uma mesma comunidade religiosa. Na essência, porém, os povos preservaram o culto a seus deuses, e o mesmo se observa em todas as regiões do Brasil onde florescem tradições de matrizes afro-indígenas.
Em uma análise teológica e antropológica, é possível identificar elementos comuns que apontam para um mesmo fio condutor das tradições hoje chamadas de Quimbanda. Esse fio condutor é Exu e Pombagira, estruturando o culto a antepassados de tradições demonizadas em solo brasileiro. Esses ancestrais carregam em si um verdadeiro baú de feitiçarias e saberes, que necessitam de um olhar decolonizador para serem acessados. O ponto central desse olhar é o sacrifício, o uso do sangue no processo iniciático e na manifestação desses ancestrais. Adentrar a tradição da Quimbanda exige romper com correntes colonizadoras dos povos afro-indígenas, o que implica uma ruptura cultural estrutural presente em diversas perspectivas de nossas vidas.
A Quimbanda Gaúcha é um culto ou religião?
Esse tópico gera diversas discussões pelo Brasil, e acredito que muito disso se deve ao fato de a imagem predominante de religião no país ser a do cristianismo católico-evangélico, que historicamente demoniza as tradições afro-indígenas. Esse processo gera uma visão distorcida do que é religião, atribuindo às tradições afro-brasileiras uma conotação negativa, o que dificulta sua aceitação como expressão legítima. Para compreendermos melhor, é necessário analisar a Quimbanda sob um olhar teológico e, se possível, também antropológico.
Na Quimbanda Gaúcha, identificamos elementos estruturantes como uma cosmovisão centrada nos Exus e Pombagiras, com mitos próprios e forças ligadas a espaços sagrados, além de atributos e funções definidas de atuação. Há também uma estrutura sacerdotal, com linhagens iniciáticas, genealógicas, sistema litúrgico, ritos, feituras, calendários e uma identidade coletiva representada pela comunidade quimbandeira. Com isso em mente, não podemos reduzir a Quimbanda Gaúcha à condição de culto, pois ela reúne todos os elementos necessários para ser reconhecida como religião. Antropologicamente, pode ser considerada recente em comparação com outras tradições afro-indígenas, mas é, ainda assim, uma religião plenamente estruturada para reunir comunidade, transmitir saberes ancestrais e constituir uma cosmovisão própria.
Exu e Pombagira são ou não ancestrais?
Esse tópico merece atenção especial, pois gera discussões intensas, principalmente quando confrontado com a perspectiva umbandista, que trata essas entidades como espíritos voltados para a caridade e evolução espiritual. Na Quimbanda, contudo, há um enfoque diferente: a relação de Exu e Pombagira com o iniciado é marcada por um laço de consanguinidade ancestral, estabelecendo-se como culto a antepassados. Para compreender melhor essa questão, é necessário esclarecer o que torna um espírito um ancestral de fato.
O que é um ancestral na Quimbanda?
Em muitas tradições de Quimbanda, o ancestral é visto como um antepassado consanguíneo divinizado, detentor de saberes ancestrais, feitiçarias e bruxarias, que se apresenta em determinado momento da jornada espiritual do iniciado. Já em outras tradições, ele pode ser entendido como um ancestral comunitário: fundador, curandeiro, líder espiritual ou herói de uma comunidade.
Com isso em mente, podemos identificar perspectivas antropológicas e genealógicas que, de certa forma, delimitam as fronteiras da Quimbanda no culto a ancestrais. Se determinada tradição afirma que o ancestral deve ser consanguíneo para se manifestar como Exu ou Pombagira, devemos considerar que o processo de miscigenação no Brasil favorece os iniciados. Quanto mais antigos os ramos familiares, maiores as chances de encontrarmos, em nossa árvore genealógica, ancestrais ligados a diferentes tradições, etnias e culturas.
Eu mesmo sou exemplo dessa realidade brasileira: em minha árvore genealógica existem antepassados de diversas culturas e religiões, incluindo ramos de escravocratas e de escravizados, além de fortes traços indígenas em duas linhas familiares. Na minha experiência como pesquisador da genealogia familiar, posso afirmar que as chances de um brasileiro possuir ancestrais consanguíneos de tradições afro-indígenas são grandes.
Nesse sentido, cabe mencionar um aspecto polêmico, mas científico, que reforça essa perspectiva: a chamada Eva Mitocondrial, considerada uma ancestral comum a toda a humanidade. O DNA mitocondrial é transmitido apenas pela linhagem materna, e estudos indicam que essa ancestral comum viveu há milhares de anos nas regiões correspondentes ao atual Zimbábue e Botsuana, no sul da África. Assim, poderíamos afirmar que todos no mundo compartilham, ao menos, uma ancestral africana em comum.
Por outro lado, como dito anteriormente, há tradições que entendem o ancestral também como comunitário, o que nos leva a outras perguntas: de qual comunidade falamos? Daquela que compartilha valores da tradição em que estamos inseridos? De uma tradição que se manteve relativamente inalterada no tempo? Se a Quimbanda é um movimento recente dentro das tradições afro-indígenas brasileiras, de qual comunidade ancestral estamos nos referindo? Considerando a forte relação dessas tradições com a natureza, é possível deduzir que seriam ancestrais ligados à terra em que vivemos e que nossos antepassados habitaram. Mas esses antepassados, de fato, honraram tais ancestrais? Prestaram culto a eles? Transmitiram-nos algo nesse sentido? Ou será que tradições novas como a Quimbanda surgiram justamente como formas de resgatar esses cultos esquecidos?
Acredito que, de algum modo, todos compartilhamos traços genéticos e culturais com ancestrais fundadores — sejam líderes, curandeiros, feiticeiros ou bruxos — e que a Quimbanda é uma forma de nos reconectar com esses traços. Mas não basta termos tais marcas, afinal todos as possuem, certo? Então, quais seriam os gatilhos que nos permitem acessar essa ancestralidade? Eu destacaria um em especial: a memória. É ela que mantém viva a ligação com nossos ancestrais, seja como legado genético, seja como estrutura psicológica, seja como memória histórica. Quando honramos nossos ancestrais, honramos sua memória. Manter um ancestral vivo é manter sua memória viva.
Cresci em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, uma cidade em que a vida urbana dita o ritmo, diferente da vida interiorana e do campo, onde tudo é mais sincronizado com a natureza. No campo, a vida familiar é mais próxima; a memória, mais clara, enraizada no solo, nos rios, nas colheitas feitas em família. As terras são as mesmas que os antepassados pisaram, e isso mantém a memória viva. Já na capital, corremos contra o tempo, isolados do contato com a terra, seja pelos pneus do carro, seja pelo relógio que nos distancia do presente.
Para mim, o resgate da memória familiar e ancestral exige processos investigativos e históricos. Esse caminho não é fácil: nele enfrentamos choques de retorno, verdades ocultas e feridas expostas. Mas é nesse processo que muitos antepassados e ancestrais têm sua memória resgatada, e, com isso, abre-se a possibilidade de se apresentarem, de nos guiarem, de nos tutelarem. Para tanto, é necessário nos despirmos de preconceitos e termos coragem de encarar verdades dolorosas, mas restaurativas. A Quimbanda é uma forma de acessar essas memórias ancestrais e esses saberes, mas de maneira visceral, o que pode ser chocante.
Devemos lembrar que muitos de nossos antepassados e ancestrais foram assassinados, tiveram suas tradições apagadas e foram silenciados pela história. Se desejamos que esses ancestrais, detentores de forças e potências, se manifestem, precisamos resgatar neles suas próprias percepções de realidade. Não é possível trazer à consciência uma feiticeira negra, escravizada e morta sob acusação de “culto ao diabo”, sob o filtro de uma perspectiva cristã, branca e patriarcal. Isso seria uma afronta à sua memória e aos seus saberes.
Na Quimbanda, esses ancestrais e antepassados encontram terreno fértil para se apresentarem de forma visceral e verdadeira — seja qual for a forma que escolham.
Nossas fronteiras versus as fronteiras ancestrais
É uma armadilha impor fronteiras físicas à ancestralidade. Digo isso porque percebo uma pauta recorrente em discussões sobre o quanto determinada região teria ou não legitimidade em sua tradição de culto a ancestrais. No meu processo de pesquisa da árvore genealógica da minha família, cheguei a ramos em Santa Catarina, mas também encontrei documentos de uma antepassada ex-escravizada que comprou sua alforria e a de seus filhos. Ela poderia ter nascido em outro estado ou até mesmo em outro país, em alguma região do continente africano. E o que dizer dos traços indígenas de outros ramos da minha família? É possível que determinada tribo tivesse limites fronteiriços cobrindo grandes regiões que hoje se encontram divididas em estados. Impor limites político-territoriais aos ancestrais é restringir sua memória às amarras da colonização.
Encontramos, sim, Exus e Pombagiras que trazem em sua estrutura simbólica elementos profundamente regionais do Rio Grande do Sul. Um exemplo é o Povo da Lomba do Cemitério, em que a palavra lomba é uma expressão tipicamente gaúcha utilizada para designar áreas de atuação espiritual. Outro exemplo são os diversos Exus e Pombagiras que trazem em sua alcunha a figueira, árvore considerada sagrada no Rio Grande do Sul, essencial para receber oferendas aos seus pés.
Eu mesmo tive uma experiência com Zé Pelintra: ele se apresentou em sonho como marinheiro, mas de uma forma muito distinta das imagens de Zé Pelintra marinheiro encontradas em lojas de artigos religiosos. Em um segundo sonho, revelou-se dentro de um grande caicó de madeira. Durante minhas pesquisas genealógicas, um ramo familiar indicou não apenas como deveriam ser as oferendas, mas também onde deveriam ser entregues. Esse ramo é da família Ferreira, especificamente de João Osório Ferreira, meu tataravô. Em conversas com Antônio Gilberto Ferreira, primo de segundo grau e quimbandeiro de 75 anos, ele me contou que meu tataravô, assim como outros familiares Ferreira, trabalhava na área portuária de Estrela, município onde estão sepultados muitos de nossos antepassados. Gilberto relatou ainda que meu tataravô, juntamente com outros parentes, descia o rio Taquari em grandes caicós de madeira até Porto Alegre para vender as colheitas da família.
Essa narrativa me remeteu à imagem de Zé Pelintra que tive no sonho, dentro de um barco de madeira. Podemos, então, deduzir que nesses entrelaçamentos genealógicos existem ancestrais que ultrapassaram fronteiras para sobreviver e construir um futuro para seus descendentes. Esse aspecto precisa ser levado em consideração quando nos colocamos como iniciados em cultos de veneração aos ancestrais.
A terra é a fronteira ancestral, e ela é única — seja visível sob nossos pés, seja nas profundezas do mar. Cultuar os ancestrais é enraizar-se na ancestralidade.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
Participe, é totalmente gratuito
Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
