Introdução: A singularidade da quimbanda no campo afro-gaúcho

A Quimbanda no Rio Grande do Sul não é apenas uma modalidade ritual; ela é uma expressão religiosa que alcançou um estatuto sem par no restante do Brasil, designando o culto proeminente de Exus e Pombagiras (Giumbelli & Almeida, 2021). Longe de ser uma mera “linha de trabalho” ou uma categoria de acusação associada à magia negra, como ocorreu em outros contextos, a Quimbanda gaúcha, ou afro-gaúcha, constituiu-se como um sistema religioso autônomo, com rituais e fundamentos próprios.
 
Este artigo se propõe a desvendar as tradições e os rituais únicos que moldaram a Quimbanda em Porto Alegre. Analisaremos como a sua formação se deu a partir da Linha Cruzada, o papel de lideranças históricas como Mãe Ieda de Ogum, e como os rituais de iniciação e a estrutura de autoridade refletem a complexidade e a vitalidade dessa religião na capital gaúcha.

1. A formação histórica e a linha cruzada: O berço gaúcho da quimbanda

A Quimbanda afro-gaúcha emerge em um cenário religioso peculiar, marcado pelo enraizamento do Batuque (o culto jeje-nagô do Sul) e da Umbanda. Sua gênese está intimamente ligada ao conceito de Linha Cruzada, que se tornou um elemento estrutural da religiosidade afro-gaúcha.

1.1. O contexto de cruzamento e a autonomia ritualística

A Linha Cruzada surge, aproximadamente no final dos anos 1950, como uma aproximação entre o Batuque e a Umbanda (Leistner, 2014). No entanto, o que a Quimbanda gaúcha fez foi ir além desse cruzamento, alcançando uma independência ritualística e deslocando Exu e Pombagira do espaço subalterno que a Umbanda lhes reservava.
 
  • Deslocamento de Status: A Quimbanda gaúcha se desenvolveu a partir da ressignificação da presença dissimulada dos Exus e Pombagiras na Umbanda. Ela se estabeleceu não mais como uma linha subordinada, mas como um sistema de crenças e uma estrutura ritual renovados (Leistner, 2014).
  • A Centralidade do Culto: A Quimbanda gaúcha é a modalidade ritual que se concentra no culto específico de Exu e Pombagira (Regis & Lages, 2024). Isso se manifestou na feitura de Exus, com procedimentos análogos aos assentamentos de Orixás, incluindo oferendas e sacrifício de animais, o que lhes conferiu a autonomia necessária para que a religião se centrasse ao seu redor (Leistner, 2014).
  • A Influência do Batuque: Diferentemente da Quimbanda do Sudeste, que se desenvolveu em um contexto mais umbandista, a Quimbanda afro-gaúcha buscou nas fundamentações do Batuque a base para sua estruturação. O ato sacrificial, o corte, é um elemento que a Quimbanda Gaúcha herdou do Batuque e que se tornou um fundamento essencial para a alimentação e a vitalidade dos assentamentos de Exus e Pombagiras.

1.2. Lideranças e a consolidação em Porto Alegre

A consolidação da Quimbanda afro-gaúcha está ligada a figuras históricas que inovaram e deram novas perspectivas para o culto na região Sul.
 
  • Mãe Ieda de Ogum: Uma das figuras precursoras é Mãe Ieda de Ogum, cujo trabalho se iniciou nos anos 1950-60 em Porto Alegre (Regis & Lages, 2024). Ela foi uma das primeiras quimbandeiras de Porto Alegre e suas inovações cerimoniais foram decisivas para a reorganização dos aspectos cosmológicos, rituais e éticos da forma religiosa emergente (Leistner, 2014). Sua influência é tamanha que seu trabalho é objeto de estudo etnográfico (Silva, 2008).
  • O Exu da Alta: O Exu de Mãe Ieda, Exu das Sete Encruzilhadas, ou “Seu Sete”, adquire uma nova performance que se afasta da subalternidade dos Exus da Umbanda. Ele se apresenta de forma requintada, com vestes e objetos votivos de alta qualidade, o que é denominado de Exu da Alta (Leistner, 2014). Isso não se refere à evolução espiritual, mas a uma questão de ascensão social, autonomia e poder (Leistner, 2014).

2. Rituais únicos: A iniciação e o culto à ancestralidade

A ritualística da Quimbanda afro-gaúcha é o que a distingue e lhe confere sua força vital. A iniciação, em particular, é o rito de passagem que sela a entrega do fiel ao espírito e é um momento de resgate de memória e celebração de expansão (Regis & Lages, 2024).

2.1. A cerimônia de iniciação: Renascimento e expansão

A iniciação na Quimbanda afro-gaúcha é um processo complexo e vital que envolve uma rede potente de relações entre deuses, espíritos, objetos, vegetais, animais e fluidos (Regis & Lages, 2024). Essa cerimônia é a que, por excelência, revitaliza e expande a religião, sendo um aceno para o passado e para o futuro, ligando a ancestralidade do adepto ao seu renascimento religioso (Regis & Lages, 2024). O ritual não é padronizado, variando de casa para casa, mas é compreendido como o modo pelo qual o corpo do adepto se torna um composto relacionado de forma intensa com as alteridades. O processo de iniciação sela a entrega do fiel a determinado espírito e, de forma geral, inclui a consulta oracular, banhos de limpeza espiritual e oferendas de alimentos (Regis & Lages, 2024).
 
A cerimônia de iniciação é um momento de profunda transformação, onde o adepto é confrontado com a sua ancestralidade e com o poder dos Exus e Pombagiras. Ela é uma celebração da expansão, na qual espíritos e pessoas se encontram nas encruzilhadas da identidade e da ancestralidade, resgatando a memória e a história da religião (Regis & Lages, 2024). O desenvolvimento mediúnico, por sua vez, não se restringe à iniciação, mas se dá durante as convivências nos rituais da casa, como obrigações coletivas ou individuais e assistência em outras cerimônias (Regis & Lages, 2024). O processo é, portanto, contínuo e integrado à vida comunitária do terreiro.
 
  • Vontade e Oráculo: A iniciação parte da vontade da pessoa ou da indicação do Guia Chefe do Templo. É a consulta oracular que irá confirmar a adesão da pessoa, e não há um tempo determinado para o processo, podendo levar anos ou alguns dias (Regis & Lages, 2024).
  • Ancestralidade e Vínculo: A diferença com a Umbanda é que, na Quimbanda, Exus e Pombagiras estão intimamente ligados à ancestralidade do médium. A iniciação liga a ancestralidade do adepto ao seu renascimento religioso (Regis & Lages, 2024).
  • O Assentamento e a Mão de Faca: O assentamento é o local físico onde a força do Exu e da Pombagira é fixada e cultuada, estabelecendo o vínculo entre o iniciado e o ancestral. A mão de faca é a outorga ritualística que confere ao sacerdote o poder de realizar o corte sacrificial para alimentar o assentamento, garantindo a vitalidade da força.

2.2. A ética da ação e a ausência de evolução espiritual

Um dos traços mais marcantes da Quimbanda gaúcha é o distanciamento da lógica de evolução espiritual kardecista presente na Umbanda.
 
  • Foco na Vida Presente: A Quimbanda tem seu foco voltado à vida presente, buscando o aprimoramento pessoal, material e emocional do praticante enquanto encarnado. Não existe o conceito nem a busca por evolução espiritual, nem da Entidade nem do Médium (Regis & Lages, 2024).
  • Poder e Transformação: As entidades da Quimbanda trazem em si mesmas a potência, o poder e a capacidade de transformação, sem necessitar de um progresso moral espiritual para tais fins (Regis & Lages, 2024). São as oferendas que garantem que Exus e Pombagiras atendam às demandas dos adeptos a partir da troca (Regis & Lages, 2024).

3. Autoridade, hierarquia e diferença na quimbanda gaúcha

A organização dos terreiros de Quimbanda afro-gaúcha é marcada por uma estrutura complexa de autoridade e hierarquia, que convive com a diferença das modalidades rituais (Batuque, Umbanda e Quimbanda) em um mesmo espaço.

3.1. A coexistência dos cultos e a estética da diferença

É muito comum encontrar terreiros afro-gaúchos nos quais as três modalidades rituais – Batuque, Umbanda e Quimbanda – são realizadas (Bernardo, 2021). Essa coexistência não gera confusão, mas é marcada por uma estética da diferença e demarcações claras.
 
  • Demarcações Materiais: As demarcações entre os cultos são colocadas não apenas em termos simbólicos, mas estéticos e materiais (Bernardo, 2021). O terreiro é dividido em espaços que correspondem a cada culto, e os objetos rituais, as cores e a performance das entidades são distintos.
  • Complementaridade: Embora diferentes, os cultos não são vistos como unidades independentes, mas sim como complementares (Bernardo, 2021). A Linha Cruzada é a expressão dessa lógica que opera simultaneamente por conexões e separações, permitindo a passagem entre as entidades cultuadas sem produzir uma confusão entre elas (Giumbelli & Almeida, 2021).

3.2. A construção da autoridade no terreiro

Os pais e mães de santo são as figuras de chefia que comandam a organização do terreiro, e a autoridade é um fator estruturante das atividades religiosas (Bernardo, 2021).
 
  • Hierarquia e Experiência: Os terreiros são hierarquizados. Aqueles com mais tempo de experiência e convivência com o grupo possuem proeminência sobre os adeptos mais recentes. No entanto, o prestígio e a autoridade não se restringem apenas aos sacerdotes, mas também a adeptos com um lugar importante no interior das casas de religião (Bernardo, 2021).
  • A Autoridade das Entidades: A autoridade também se manifesta no trato com as entidades. O ato de curvar-se para receber a entidade de um pai ou mãe de santo, e a necessidade de cumprir um percurso de reverência, demonstram que a autoridade é um elemento que circula entre pessoas, espaços e entidades (Bernardo, 2021).

4. O enigma da quimbanda: Exposição e reconhecimento

O fato de a Quimbanda ser declarada e cultuada abertamente no Rio Grande do Sul é um enigma no contexto brasileiro, onde ela foi historicamente uma categoria de acusação (Giumbelli & Almeida, 2021).

4.1. A positividade do culto e a visibilidade

A Quimbanda gaúcha adquiriu uma certa positividade e vitalidade, o que se reflete em termos estatísticos (Giumbelli & Almeida, 2021).
 
  • Números Expressivos: Em 2010, 28% das casas de religião afro-gaúcha em Porto Alegre declararam a prática da Quimbanda, um número expressivo que não se repete em outras capitais brasileiras (Giumbelli & Almeida, 2021).
  • Formas de Exposição: A pujança da Quimbanda gaúcha está ligada às suas formas de exposição, que encadeiam manifestações espirituais, registros fotográficos e divulgação na internet (Giumbelli & Almeida, 2021). O uso de “novas mídias” e tecnologias contribui para a afluência e o reconhecimento da religião.

4.2. O exu e a pombagira como agentes de transformação

A aceitação e a proeminência da Quimbanda gaúcha estão ligadas à forma como ela lida com as entidades centrais, Exu e Pombagira.
 
  • O “Lixo Simbólico”: A Quimbanda assume como positivo e constitutivo de sua religiosidade “todos os resíduos rejeitados pelas demais confissões” (Leistner, 2018, citado em Giumbelli & Almeida, 2021). Ela incorpora o “lado sombrio” ou “marginal”, polarizando-se com as concepções do sagrado típicas da tradição ocidental.
  • Ação e Resolução: Exus e Pombagiras são vistos como agentes de transformação que atuam na matéria e na resolução de problemas práticos, sem a necessidade de máscaras ou “embranquecimento” de seus fundamentos.

Conclusão: A força inovadora da tradição afro-gaúcha

A Quimbanda Afro-Gaúcha é um testemunho da capacidade de inovação e resistência das religiões de matriz africana no Brasil. Sua estrutura ritualística, baseada na Linha Cruzada e no culto autônomo de Exus e Pombagiras, reflete uma teologia focada na ação, na ancestralidade e na resolução de problemas da vida presente.
 
A proeminência da Quimbanda em Porto Alegre, marcada pela sua visibilidade, pela complexidade de seus rituais de iniciação e pela coexistência harmoniosa com o Batuque e a Umbanda, a torna um campo de estudo e prática de singular importância para a compreensão da religiosidade brasileira. Ela não apenas resistiu ao estigma, mas o transformou em uma fonte de poder e autonomia, afirmando a sua identidade afro-gaúcha com força e originalidade.

Referências e fontes consultadas

Este artigo foi construído com base nas minhas observações e pesquisas além das informações contidas nos seguintes documentos:

  • Bernardo, A. K. (2021). Autoridade, hierarquia e diferença: Um intercurso nos terreiros afro-gaúchos. Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
 
  • Giumbelli, E. A., & Almeida, L. O. (2021). O Enigma da quimbanda: formas de existência e de exposição de uma modalidade religiosa afro-brasileira no Rio Grande do Sul. Revista de Antropologia, 64(2).
 
  • Leistner, R. M. (2014). Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
 
  • Regis, E., & Lages, S. R. C. (2024). A cerimônia de iniciação na Quimbanda afro-gaúcha. Revista Calundu, 8(2), 147-164.
 
  • Silva, S. D. (2008). A Quimbanda de Mãe Ieda: religião “afro-gaúcha” de “exus” e “pombas-giras”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco.
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