Os povos e reinos de exú e pombagira na Quimbanda Gaúcha
Falar sobre os povos e reinos de Exu e Pombagira na Quimbanda Gaúcha é mergulhar nas profundezas dos mistérios primordiais. É preciso um espírito aventureiro, disposto a transitar entre a alegria e o medo, buscando alargar a percepção do sagrado por meio de uma fenda de encantamento. Trata-se de um ato de ressignificação da alma e, por isso, merece todo cuidado e honra.
Para trilharmos os caminhos que nos levam até os reinos e povos de Exu e Pombagira, é necessário primeiro compreender as experiências primordiais da humanidade, que de certa forma constituem as bases fundacionais do que chamamos de reinos na Quimbanda Gaúcha.
Experiência existencial humana
Podemos dizer que são experiências inevitáveis da humanidade. Essas experiências não são literais em sua totalidade: carregam significados mais profundos. A morte de um familiar, por exemplo, não é apenas a morte de um ser humano. É a partida de alguém que amamos, que deixará saudades, que era amigo, apoio na família. Isso traz consigo diversas emoções: tristeza, saudade, às vezes raiva, o luto. São experiências arrebatadoras: a tristeza pode levar à depressão, a raiva a um ato impensado, a saudade a uma nostalgia excessiva. Além disso, a morte carrega consigo o mistério do invisível, do pós-morte, algo incontrolável e poderoso, que por isso causa medo.
Assim, a morte não é apenas a perda de um humano: ela impacta nosso mundo emocional, psíquico, espiritual e, consequentemente, nossa realidade material.
Outras experiências existenciais também transformam nosso ser em todas as dimensões: vida, morte, sofrimento, amor, desejo, destino, mistério, numinoso. Essas experiências podem constelar estruturas arquetípicas que desencadeiam vivências afetivo-existenciais. Rudolf Otto chamou esse fenômeno de numinoso, pois ele provoca simultaneamente temor e fascínio.
Uma experiência como a morte, por exemplo, pode constelar o arquétipo do ancestral: medo da morte, sensação de desejos não realizados, vazio da perda, entre outros. Todos esses conteúdos, dispersos no inconsciente, se reorganizam em torno de um símbolo ou arquétipo carregado de afeto intenso. Essa reorganização permite que o inconsciente se torne vivível e integrável à consciência.
Nesse campo simbólico-arquetípico, um elemento específico pode ser constelado, e essa constelação “puxa” conteúdos relacionados, organizando-os ao redor desse centro. Assim, fragmentos do inconsciente antes dispersos ganham forma simbólica. Isso reorganiza a psique, pois o iniciado passa a perceber, vivenciar e dialogar com aquilo que antes estava fragmentado.
- A dor encontra uma imagem, como Exu Caveira.
- O desejo encontra uma imagem, como a Pombagira do Cabaré.
- O caos da vida encontra um guardião, como Seu Zé Pelintra.
O inconsciente, assim, se comunica em linguagem simbólica acessível. E o iniciado retorna do estado liminar transformado: aquilo que estava reprimido, esquecido ou inconsciente agora foi vivido simbolicamente.
Por isso os reinos são poderosos: porque viabilizam a integração de conteúdos profundos da psique, promovendo grandes mudanças na vida do iniciado.
O reino de quimbanda e seus territórios
Na Quimbanda, os reinos são acessados primeiramente em fronteiras físicas: regiões carregadas de elementos concretos e simbólicos que se tornam campos de manifestação de forças — inconscientes e espirituais.
Dentro de um território ritual, encontramos uma estrutura base:
- Elementos naturais: fogo, terra, água, ar, vento, pedra, árvore, lua, sol, ferro, etc.;
Paisagens concretas: cemitério, encruzilhada, mata, praia, cruzeiro, estrada, etc.; - Forças ambientais: vida e morte, fertilidade e decomposição, movimento e estagnação;
- Forças elementares: correntezas, ventos, fogo, peso da pedra;
- Campo simbólico: medo, respeito, fascínio, sacralidade.
É nesse território físico e simbólico, com todas essas forças atuantes, que o iniciado ancora sua experiência religiosa. Essa ancoragem gera uma ressonância psíquica: o ambiente, com sua fisicalidade externa somada ao significado simbólico, reverbera no interior do praticante como um espelho energético, produzindo estados de sensibilidade, abertura e transe.
Na Quimbanda, o reino é campo de atuação, onde forças e consciências se relacionam. Nesse espaço, o iniciado é transformado. Um elemento pode despertar o medo, mas, uma vez constelado, pode também se converter em coragem. Exu e Pombagira são esse meio, esse canal, e também são os próprios significados. Eles fundem extremos: o medo se torna coragem, o desejo se torna liberdade, o sofrimento se torna saber.
O quimbandeiro no reino de exú e pombagira
O quimbandeiro, ao adentrar os reinos de Exu e Pombagira, ativa e traz à fisicalidade forças profundas capazes de transformar consciências — sejam de iniciados, sejam de necessitados. Essa transformação não ocorre por uma compreensão lógica, mas por uma experiência visceral, carregada de terror e fascínio. A intensidade afetiva gera catarse, integração de conteúdos reprimidos, e, com isso, saber, força e capacidade de ação resolutiva.
Por isso muitos afirmam que a Quimbanda é visceral: quem não está disposto ao sacrifício de seus apegos pode sucumbir às torrentes de temor e fascínio e perder-se nas sombras dos reinos.
Podemos destacar duas qualidades fundamentais de um quimbandeiro:
- Habilidade de conduzir o iniciado ou necessitado no processo de constelação simbólica, ativando elementos e gerando ressonância psíquica por meio de símbolos, rituais, feitiços e práticas meditativas;
- Qualidade de ter passado por constelações próprias, integrando conteúdos diversos, tornando-se “imagem viva” de Exu e Pombagira. O tempo, a experiência e o sofrimento o moldam como um símbolo de transformação, um guia e líder, porque Exu e Pombagira são ancestrais que alcançaram esse estado de ser.
Exemplo: o reino das matas
Imaginemos o reino das matas, e que o ritual tenha como objetivo concretizar um projeto de vida. Quais elementos podem entrar em jogo?
- Elementos transformadores da fertilidade: árvores, plantas e animais, que carregam em si o ciclo de nascimento, crescimento, morte e renovação;
- Elemento ar: ligado à polinização, fecundação e dispersão de sementes, além da atração pelo perfume das flores;
- Elemento terra: ligada ao solo, à decomposição orgânica, à incubação da semente e ao fornecimento de nutrientes;
- Elemento água: ligada à nutrição, à seiva, ao “sangue” da árvore, veículo que distribui energia vital;
- Elemento fogo: ligado ao sol, fonte de energia que alimenta a fotossíntese.
Um feitiço simples poderia consistir em coletar uma semente como ponto focal do projeto, impregnando-a com o desejo de realização. Ao redor, flores perfumadas representariam o ar. A semente seria enterrada (terra), regada (água) e deixada exposta à luz solar (fogo). Esse ritual, firmado sob a tutela de um ancestral — Exu, Pombagira, Caboclo ou Preto-Velho —, adquire força vital.
Esse exemplo simples mostra como os elementos constelam em conjunto para criar um microcosmo ritual. Ao unir todos os elementos em movimento, o iniciado constela em si mesmo as forças da natureza, gerando potência máxima para a realização do intento.
Conclusão
Essa análise servirá de base para um aprofundamento no estudo dos reinos de Exu e Pombagira na Quimbanda Gaúcha. Nos conteúdos seguintes, espero iniciar uma investigação mais detalhada de cada reino. Essas análises fazem parte de um amplo mapeamento que sigo construindo, abrangendo toda a cadeia de fatores responsáveis pelo ato ritual de incorporação ou manifestação de Exu e Pombagira na vida do iniciado.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
Participe, é totalmente gratuito
Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
