Os sonhos e a dimensão onírica na Quimbanda

Sonhos com exú e pombagira na Quimbanda - Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Os sonhos e a dimensão onírica na Quimbanda Sonhei que estava indo visitar um ritual. Eu havia sido convidado e, como estava viajando para um país diferente, aproveitei para conhecer as práticas religiosas locais. Alguém que me acompanhava conseguiu, de alguma forma, que participássemos do ritual. O templo onde o ritual acontecia lembrava muito uma igreja antiga, com um teto extremamente alto, no limite da cobertura. Era construído de pedras e possuía um espaço interno amplo. No nível do altar, havia uma grande área aberta. À frente dessa área, estava sentada uma sacerdotisa de aparência idosa, com cerca de 50 a 60 anos. Ela vestia um vestido preto de estilo antigo, com lapelas roxo-escuras. Eu me sentei em um banco próximo ao altar, ao lado de diversos sacerdotes. Todos usavam vestimentas rituais diferentes, que lembravam trajes de religiões de matriz africana. Cada um segurava uma bengala, e eu também tinha a minha: parecia um galho seco de árvore, com uma pedra oval preta e fosca no apoio da mão. A sacerdotisa então incorporou uma entidade. Era Maria Mulambo, mas com uma aparência muito idosa, uma verdadeira anciã. No sonho, ela era uma loa. Instintivamente, comecei a bater minha bengala no chão em reverência a ela. Maria Mulambo veio até mim bem devagar e chamou um cambono, um rapaz que a auxiliava no ritual. Ela disse a ele que depois falaria comigo. O cambono hesitou, questionando se era realmente a mim que ela se referia. Com firmeza, ela confirmou: sim, era comigo. Os sonhos são canais de memória ancestral, além de uma dimensão em que a comunicação com os ancestrais pode ser ampliada, tornando possível acessar o numinoso por meio dos símbolos e arquétipos que emergem do inconsciente. Hoje, quando ouvimos falar de arquétipos, muitas vezes ficamos desconfiados dos temas que utilizam esse conceito para explicar determinados fenômenos — e eu concordo! Arquétipo é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para elucidar estruturas ancestrais herdadas pela psique, que permanecem “adormecidas” ou ativas em nosso inconsciente. Essas estruturas carregam a experiência da nossa relação com o universo, com a natureza e com as principais vivências existenciais humanas, como a vida, a morte, o sofrimento, entre outras. Jung interpretou que os deuses seriam estruturas arquetípicas, que, por sua vez, se manifestam em múltiplas imagens arquetípicas. Essas imagens seriam símbolos, ou conjuntos de símbolos. É por isso que os rituais causam grande impacto em nosso ser (físico, psíquico e emocional) quando realizados de forma adequada: eles “despertam” essas estruturas que constelam diversos conteúdos relacionados, permitindo-nos assimilar experiências profundas. Os sonhos podem produzir o mesmo efeito. Acredito que nossos ancestrais possuem a habilidade de estabelecer contato por meio dessa dimensão onírica. Mas por que, afinal, pelos sonhos e não por palavras em uma conversa direta? Porque, nos sonhos, a linguagem é simbólica, o que nos obriga a acessar camadas mais profundas de entendimento, assimilando continuamente novos conteúdos. Símbolos e arquétipos são fontes inesgotáveis de significados. Existem mensagens que precisam gerar saberes capazes de perdurar no tempo, e os sonhos são meios eficazes para isso. Tomemos como exemplo o reino dos cemitérios. De imediato, podemos reconhecer símbolos como caixões, ossos, caveiras, cruzes, túmulos, catacumbas, cruzeiros das almas, entre outros. Se analisarmos a caveira, podemos dizer, de forma imediata, que ela simboliza a morte — e isso está correto, especialmente dentro de um cemitério. Mas a caveira também representa a morada do saber, pois nela “habita” a psique, o cérebro, a razão. Além disso, como parte do esqueleto, simboliza aquilo que permanece após a morte. Assim, podemos ir mais fundo e compreender a caveira como o saber que sobrevive além da morte. Percebem como um único elemento simbólico pode conter múltiplos significados? A mensagem, portanto, pode adquirir novas interpretações ao longo do tempo, conforme ampliamos nosso repertório simbólico. É por isso que os ancestrais atuam de forma simbólica, e as transformações ocorrem aos poucos: a experiência e a vivência expandem nossa capacidade de constelar novos conteúdos em nosso ser, possibilitando grandes transformações. Costumo dizer que os sonhos são ferramentas muito mais poderosas para um quimbandeiro do que para um umbandista. Isso porque, em geral, os sonhos trazem à tona elementos reprimidos, memórias dolorosas, memórias ancestrais e conteúdos muitas vezes viscerais — um escopo que se encaixa mais intensamente na atmosfera da Quimbanda, especialmente pela força de Exu e Pombagira, que atuam em reinos e regiões espirituais onde habitam as sombras da alma. Como o contato com essas estruturas arquetípicas tende a ser profundamente catártico, é necessária uma estrutura ritual que organize e integre os conteúdos constelados, de forma que possam se tornar transformadores na consciência do iniciado. Sonhos também podem ser iniciáticos na quimbanda Sonhei que havia feito um vulto, uma boneca totalmente preta, esculpida em madeira. Ela tinha um formato gordinho e simples, com um vestido preto que também fazia parte da madeira. Disse a alguém que estava comigo que precisava cortar três galinhas para ela. A pessoa insistiu que não era necessário, mas eu reafirmei que era. Então, cortei as três galinhas e derramei todo o sangue sobre a imagem, banhando-a completamente. A madeira absorveu o sangue, ficando com um brilho espesso, como se tivesse sido coberta por uma tinta preta e viscosa. Foi nesse momento que a entidade na imagem falou: “Viu? Era isso que eu precisava para falar.” Ouvi sua voz claramente, como se fosse uma pessoa falando. Apenas a boca da boneca vibrou ao pronunciar as palavras. Virei para a pessoa que estava comigo e disse: “Viu? Eu disse que ela precisava disso para falar.” Esse sonho ocorreu cerca de um mês e meio após o anterior e serve muito bem para ilustrar que, além de trabalharem conteúdos profundos da psique, os sonhos também podem ser iniciáticos. Podemos perceber que, além de iniciáticos, eles podem ser orientadores em relação ao processo de iniciação. No primeiro sonho, a paciência e o tempo aparecem como fatores de preparação; já no segundo, a orientação é clara quanto ao necessário para estabelecer a atuação

Os povos e reinos de exú e pombagira na Quimbanda Gaúcha

Os povos e reinos de exú e pombagira na Quimbanda Gaúcha - Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Os povos e reinos de exú e pombagira na Quimbanda Gaúcha Falar sobre os povos e reinos de Exu e Pombagira na Quimbanda Gaúcha é mergulhar nas profundezas dos mistérios primordiais. É preciso um espírito aventureiro, disposto a transitar entre a alegria e o medo, buscando alargar a percepção do sagrado por meio de uma fenda de encantamento. Trata-se de um ato de ressignificação da alma e, por isso, merece todo cuidado e honra. Para trilharmos os caminhos que nos levam até os reinos e povos de Exu e Pombagira, é necessário primeiro compreender as experiências primordiais da humanidade, que de certa forma constituem as bases fundacionais do que chamamos de reinos na Quimbanda Gaúcha. Experiência existencial humana Podemos dizer que são experiências inevitáveis da humanidade. Essas experiências não são literais em sua totalidade: carregam significados mais profundos. A morte de um familiar, por exemplo, não é apenas a morte de um ser humano. É a partida de alguém que amamos, que deixará saudades, que era amigo, apoio na família. Isso traz consigo diversas emoções: tristeza, saudade, às vezes raiva, o luto. São experiências arrebatadoras: a tristeza pode levar à depressão, a raiva a um ato impensado, a saudade a uma nostalgia excessiva. Além disso, a morte carrega consigo o mistério do invisível, do pós-morte, algo incontrolável e poderoso, que por isso causa medo. Assim, a morte não é apenas a perda de um humano: ela impacta nosso mundo emocional, psíquico, espiritual e, consequentemente, nossa realidade material. Outras experiências existenciais também transformam nosso ser em todas as dimensões: vida, morte, sofrimento, amor, desejo, destino, mistério, numinoso. Essas experiências podem constelar estruturas arquetípicas que desencadeiam vivências afetivo-existenciais. Rudolf Otto chamou esse fenômeno de numinoso, pois ele provoca simultaneamente temor e fascínio. Uma experiência como a morte, por exemplo, pode constelar o arquétipo do ancestral: medo da morte, sensação de desejos não realizados, vazio da perda, entre outros. Todos esses conteúdos, dispersos no inconsciente, se reorganizam em torno de um símbolo ou arquétipo carregado de afeto intenso. Essa reorganização permite que o inconsciente se torne vivível e integrável à consciência. Nesse campo simbólico-arquetípico, um elemento específico pode ser constelado, e essa constelação “puxa” conteúdos relacionados, organizando-os ao redor desse centro. Assim, fragmentos do inconsciente antes dispersos ganham forma simbólica. Isso reorganiza a psique, pois o iniciado passa a perceber, vivenciar e dialogar com aquilo que antes estava fragmentado. A dor encontra uma imagem, como Exu Caveira. O desejo encontra uma imagem, como a Pombagira do Cabaré. O caos da vida encontra um guardião, como Seu Zé Pelintra. O inconsciente, assim, se comunica em linguagem simbólica acessível. E o iniciado retorna do estado liminar transformado: aquilo que estava reprimido, esquecido ou inconsciente agora foi vivido simbolicamente. Por isso os reinos são poderosos: porque viabilizam a integração de conteúdos profundos da psique, promovendo grandes mudanças na vida do iniciado. O reino de quimbanda e seus territórios Na Quimbanda, os reinos são acessados primeiramente em fronteiras físicas: regiões carregadas de elementos concretos e simbólicos que se tornam campos de manifestação de forças — inconscientes e espirituais. Dentro de um território ritual, encontramos uma estrutura base: Elementos naturais: fogo, terra, água, ar, vento, pedra, árvore, lua, sol, ferro, etc.;Paisagens concretas: cemitério, encruzilhada, mata, praia, cruzeiro, estrada, etc.; Forças ambientais: vida e morte, fertilidade e decomposição, movimento e estagnação; Forças elementares: correntezas, ventos, fogo, peso da pedra; Campo simbólico: medo, respeito, fascínio, sacralidade. É nesse território físico e simbólico, com todas essas forças atuantes, que o iniciado ancora sua experiência religiosa. Essa ancoragem gera uma ressonância psíquica: o ambiente, com sua fisicalidade externa somada ao significado simbólico, reverbera no interior do praticante como um espelho energético, produzindo estados de sensibilidade, abertura e transe. Na Quimbanda, o reino é campo de atuação, onde forças e consciências se relacionam. Nesse espaço, o iniciado é transformado. Um elemento pode despertar o medo, mas, uma vez constelado, pode também se converter em coragem. Exu e Pombagira são esse meio, esse canal, e também são os próprios significados. Eles fundem extremos: o medo se torna coragem, o desejo se torna liberdade, o sofrimento se torna saber. O quimbandeiro no reino de exú e pombagira O quimbandeiro, ao adentrar os reinos de Exu e Pombagira, ativa e traz à fisicalidade forças profundas capazes de transformar consciências — sejam de iniciados, sejam de necessitados. Essa transformação não ocorre por uma compreensão lógica, mas por uma experiência visceral, carregada de terror e fascínio. A intensidade afetiva gera catarse, integração de conteúdos reprimidos, e, com isso, saber, força e capacidade de ação resolutiva. Por isso muitos afirmam que a Quimbanda é visceral: quem não está disposto ao sacrifício de seus apegos pode sucumbir às torrentes de temor e fascínio e perder-se nas sombras dos reinos. Podemos destacar duas qualidades fundamentais de um quimbandeiro: Habilidade de conduzir o iniciado ou necessitado no processo de constelação simbólica, ativando elementos e gerando ressonância psíquica por meio de símbolos, rituais, feitiços e práticas meditativas; Qualidade de ter passado por constelações próprias, integrando conteúdos diversos, tornando-se “imagem viva” de Exu e Pombagira. O tempo, a experiência e o sofrimento o moldam como um símbolo de transformação, um guia e líder, porque Exu e Pombagira são ancestrais que alcançaram esse estado de ser.   Exemplo: o reino das matas Imaginemos o reino das matas, e que o ritual tenha como objetivo concretizar um projeto de vida. Quais elementos podem entrar em jogo? Elementos transformadores da fertilidade: árvores, plantas e animais, que carregam em si o ciclo de nascimento, crescimento, morte e renovação; Elemento ar: ligado à polinização, fecundação e dispersão de sementes, além da atração pelo perfume das flores; Elemento terra: ligada ao solo, à decomposição orgânica, à incubação da semente e ao fornecimento de nutrientes; Elemento água: ligada à nutrição, à seiva, ao “sangue” da árvore, veículo que distribui energia vital; Elemento fogo: ligado ao sol, fonte de energia que alimenta a fotossíntese. Um feitiço simples poderia consistir em coletar uma semente como ponto focal do projeto, impregnando-a com o

Quimbanda e o culto a ancestrais em terras gaúchas

Quimbanda e o culto a ancestrais em terras gaúchas - Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

Quimbanda e o culto a ancestrais em terras gaúchas Falar sobre a Quimbanda com um enfoque nas tradições quimbandeiras do Rio Grande do Sul é uma aventura entrelaçada em processos de rupturas e disrupções rituais. Diferente do eixo RJ-SP, onde diversas tradições diaspóricas se mantiveram próximas e, de certa forma, preservadas, no RS verificamos um movimento interno de ruptura de grupos de espíritos que até aquele momento atuavam dentro do escopo dos rituais de Umbanda. Nesse contexto, Exus e Pombagiras estavam limitados à estrutura ritual e teológica da Umbanda. No RS, a tradição predominante sempre foi a de forte influência kardecista, marcada pelo mito fundador do Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado por Zélio Fernandino de Moraes. Essa tradição de Umbanda é fruto de um processo de embranquecimento das tradições afro-indígenas, em que a figura de Exu e Pombagira passou a ser demonizada, tendo seus campos de atuação reduzidos ou totalmente apagados. Entre as décadas de 1950 e 1960, no RS, observa-se um movimento de ruptura desses agrupamentos espirituais, nos quais o sacrifício de animais passou a integrar o bojo ritual, especialmente nas feituras, abrindo caminho para um processo de inovação nos assentamentos de Exus e Pombagiras. Esse novo movimento ficou conhecido como linha cruzada, por surgir em comunidades que reuniam elementos do Batuque e da Umbanda em um mesmo espaço iniciático. É desse cruzamento que se evidencia a influência do Batuque na formatação dos rituais fundadores da Quimbanda, garantindo-lhe independência enquanto tradição. O processo de demonização de Exus, Pombagiras e até mesmo de muitos Caboclos e Pretos-Velhos ditos quimbandeiros limitou o campo de ação de espíritos que necessitam de elementos rituais proibidos nos limites da Umbanda popular. Dentro das tradições quimbandeiras, esses espíritos encontraram liberdade e ferramentas para se manifestarem de forma mais genuína, revelando sua força e seus saberes àqueles que, em sua ancestralidade, mantêm ligação com eles. É consenso em diversas tradições de Quimbanda que Exus e Pombagiras são espíritos de antepassados, ancestrais divinizados, feiticeiros e bruxos de tradições que sobreviveram ao tempo e ao apagamento. Na Quimbanda, eles se apresentam com nomes que identificam agrupamentos de espíritos ligados a funções ou campos específicos de atuação. Em algumas tradições, esses agrupamentos são chamados de falanges; em outras, de comunidades espirituais ou egrégoras. O fato é que esses conjuntos acumulam ritos, símbolos, saberes e até compartilham poder e campo de ação, o que lhes confere culto e, por consequência, relações de poder nas quais os iniciados — descendentes de tradições — ampliam suas fronteiras de atuação. É importante resgatar, na história formadora do Rio Grande do Sul, a diáspora dos povos escravizados, que em diferentes regiões do Brasil utilizaram diversos artifícios para preservar suas tradições. Cada região adquiriu particularidades nesse processo, seja por meio do sincretismo, seja por fusões de tradições. No Batuque do RS, por exemplo, divindades de diferentes origens são cultuadas no mesmo grupo. Encontramos Voduns cultuados junto a Orixás, compartilhando espaço em uma mesma comunidade religiosa. Na essência, porém, os povos preservaram o culto a seus deuses, e o mesmo se observa em todas as regiões do Brasil onde florescem tradições de matrizes afro-indígenas. Em uma análise teológica e antropológica, é possível identificar elementos comuns que apontam para um mesmo fio condutor das tradições hoje chamadas de Quimbanda. Esse fio condutor é Exu e Pombagira, estruturando o culto a antepassados de tradições demonizadas em solo brasileiro. Esses ancestrais carregam em si um verdadeiro baú de feitiçarias e saberes, que necessitam de um olhar decolonizador para serem acessados. O ponto central desse olhar é o sacrifício, o uso do sangue no processo iniciático e na manifestação desses ancestrais. Adentrar a tradição da Quimbanda exige romper com correntes colonizadoras dos povos afro-indígenas, o que implica uma ruptura cultural estrutural presente em diversas perspectivas de nossas vidas. A Quimbanda Gaúcha é um culto ou religião? Esse tópico gera diversas discussões pelo Brasil, e acredito que muito disso se deve ao fato de a imagem predominante de religião no país ser a do cristianismo católico-evangélico, que historicamente demoniza as tradições afro-indígenas. Esse processo gera uma visão distorcida do que é religião, atribuindo às tradições afro-brasileiras uma conotação negativa, o que dificulta sua aceitação como expressão legítima. Para compreendermos melhor, é necessário analisar a Quimbanda sob um olhar teológico e, se possível, também antropológico. Na Quimbanda Gaúcha, identificamos elementos estruturantes como uma cosmovisão centrada nos Exus e Pombagiras, com mitos próprios e forças ligadas a espaços sagrados, além de atributos e funções definidas de atuação. Há também uma estrutura sacerdotal, com linhagens iniciáticas, genealógicas, sistema litúrgico, ritos, feituras, calendários e uma identidade coletiva representada pela comunidade quimbandeira. Com isso em mente, não podemos reduzir a Quimbanda Gaúcha à condição de culto, pois ela reúne todos os elementos necessários para ser reconhecida como religião. Antropologicamente, pode ser considerada recente em comparação com outras tradições afro-indígenas, mas é, ainda assim, uma religião plenamente estruturada para reunir comunidade, transmitir saberes ancestrais e constituir uma cosmovisão própria. Exu e Pombagira são ou não ancestrais? Esse tópico merece atenção especial, pois gera discussões intensas, principalmente quando confrontado com a perspectiva umbandista, que trata essas entidades como espíritos voltados para a caridade e evolução espiritual. Na Quimbanda, contudo, há um enfoque diferente: a relação de Exu e Pombagira com o iniciado é marcada por um laço de consanguinidade ancestral, estabelecendo-se como culto a antepassados. Para compreender melhor essa questão, é necessário esclarecer o que torna um espírito um ancestral de fato. O que é um ancestral na Quimbanda? Em muitas tradições de Quimbanda, o ancestral é visto como um antepassado consanguíneo divinizado, detentor de saberes ancestrais, feitiçarias e bruxarias, que se apresenta em determinado momento da jornada espiritual do iniciado. Já em outras tradições, ele pode ser entendido como um ancestral comunitário: fundador, curandeiro, líder espiritual ou herói de uma comunidade. Com isso em mente, podemos identificar perspectivas antropológicas e genealógicas que, de certa forma, delimitam as fronteiras da Quimbanda no culto a ancestrais. Se determinada tradição afirma que o ancestral deve ser consanguíneo para se

Árvore Genealógica da Quimbanda Gaúcha

Árvore Genealógica da Quimbanda Gaúcha - Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

A ancestralidade é caminho percorrido Honrar a terra é honrar os ancestrais Esse conteúdo faz parte de um projeto em constante evolução. Por isso, as informações podem ser atualizadas e ampliadas sempre que novos dados vierem ao encontro de nossa pesquisa. Sinta-se convidado a colaborar: se você é integrante de uma comunidade religiosa das tradições afro-indígenas do Rio Grande do Sul, pode entrar em contato e compartilhar informações relevantes para atualizarmos nossa pesquisa genealógica das tradições de Quimbanda no RS. As informações aqui apresentadas tiveram como referências iniciais trabalhos acadêmicos de pesquisadores de áreas distintas, como História, Antropologia, Teologia e Ciências da Religião. Sempre que possível, incluiremos as referências ao final das informações. Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos. Instagram Facebook YouTube Linktr.ee E-mail Entendemos que a diversidade de olhares e vozes contribui para que os saberes ancestrais alcancem uma maior profundidade transformadora de consciências. Por isso, o núcleo de estudos e pesquisa ancestral é totalmente gratuito. Quero participar do núcleo 1. Matrizes e Tradições que Influenciam a Quimbanda Batuque (Nações/Lados): Oyó/Nagô, Jeje, Ijexá e Cabinda — bases do campo afro-gaúcho. Destaques: Jeje → Príncipe Custódio de Xapanã (Joaquim Custódio de Almeida, c.1832–1936) em Porto Alegre (1899–1935). Ijexá → Cudjobá → Mãe Celestrina de Oxum Docô → Hugo da Iemanjá (1904–1957). Redes antigas → Pai Paulino do Oxalá Efan (fim séc. XIX), Pai Manoelzinho de Xapanã (1886–1948), Pai Idalino do Ogum (†1987), Mãe Ondina de Xapanã, Mãe Ester de Iemanjá. Esses troncos sustentam a circulação de ogãs, toques, “lados” e prestígio que dão base à Quimbanda no RS. Campo umbandista / Linha Cruzada: A partir de meados do séc. XX → intercâmbios entre Batuque e Umbanda (padrinhos de Exu, troca de símbolos). Esse processo padroniza uma matriz quimbandeira regional, tornando-se terreno fértil para a Quimbanda com corte. 2. Tronco Fundacional da Linha Cruzada (final 1950s–1960s) Pai Eliseu do Ogum Forte atuação no início dos anos 1960. Um dos primeiros a realizar feitura/corte de Exu (introduzindo sacrifício de galo, bode etc.). Iniciador de Mãe Ieda → ela própria diz: “entrei para a Quimbanda com corte na casa de Pai Eliseu do Ogum”. Inovador que aproximou Exu da lógica do Batuque (sangue, milho, batata → oferendas no estilo do Bará). Pai Vinicius de Oxalá Atuação anos 1960–70. Seu terreiro começa nos moldes umbandistas, mas logo adota feitura completa de Exu para eficácia mágica. Descendente da linhagem Mãe Chininha do Xangô → Nelson de Xangô (tronco Jeje). Muito citado na zona norte de Porto Alegre (anos 1970). 3. Troncos Reformadores (1960s–1970s) Esses três troncos consolidam o modelo ritual e cosmológico da Quimbanda afro-gaúcha: Mãe Ieda do Ogum Médium do Exu Rei das Sete Encruzilhadas. Estrutura calendário, musicalidade (curimba), ritos e difusão. Descendências: Mãe Nilzinha do Maré (apadrinhamentos nos anos 1970). Ogãs/tamboreiros (ex.: Antônio Carlos do Xangô) → fixam estética musical. Pai João Altair do Bará Associado ao Exu Rei Sete de Malê. Descendência: → Édison do Exu Corcunda (difusão nos anos 1970). Mãe Teresinha de Oxalá Ligada à Pombagira Mirongueira. Descendência: → Pai Neco de Oxalá (Exu Lúcifer) (difusão desde anos 1970). 4. Segunda Geração (Expansão – anos 1980 em diante) Pai Sidnei do Seu Sete (Exu Sete Cruzeiros) – principal divulgador em Alvorada. Joãozinho do Meia-Noite (Exu da Meia-Noite) – difusão em Canoas. Selma do Exu Mangueira – Canoas. Cláudio do Das Almas (Exu Tranca-Rua das Almas) – Canoas. Pai Idy de Oxum (Exu Sete Cruzeiros) – inserção em novas praças (anos 1980–90). 5. Personagens e Entidades de Referência Exu Rei das Sete Encruzilhadas → central na casa de Mãe Ieda. Zé Pelintra, Exu Tata Caveira, Exu Maré, Pomba-Gira Maria Padilha → recorrentes em festas, capas de discos/revistas, ícones entre 1960–2010. 6. Marcos Rituais, Musicalidade e Forma da Quimbanda Padronização (1960s–1980s): Resultado da circulação de agentes e símbolos entre Batuque e Umbanda. Criação de uma comunidade quimbandeira com códigos compartilhados. Ciclo anual (na casa de Mãe Ieda): Sessões semanais. Agosto → festas culminando em 18/08. Festa no Cruzeiro. Festa de Gala. Mesa das Almas (novembro). Ritos de elebó e “feitura”. Curimba (toques, pancadas, pontos cantados e riscados) → identidade sonora. 7. Visão em “Árvore” (resumo textual) Matrizes (séc. XIX–XX): Custódio de Xapanã; Cudjobá → Mãe Celestrina → Hugo da Iemanjá; Pai Paulino → Manoelzinho (1886–1948) → Ondina/Ester; Oyó/Nagô; Cabinda. Linha Cruzada (c. 1958–65): Pai Eliseu do Ogum → Mãe Ieda (transição Umbanda branca → Quimbanda com corte). Pai Vinicius de Oxalá (terreiro pioneiro em sacralização; descendência Jeje). Troncos reformadores (1960s–70s): Mãe Ieda do Ogum → Mãe Nilzinha + músicos. Pai João Altair → Édison do Exu Corcunda. Mãe Teresinha → Pai Neco de Oxalá. Expansão (1980s+): Pai Sidnei, Joãozinho do Meia-Noite, Selma do Mangueira, Cláudio do Das Almas, Pai Idy. Ritos e calendário: semanais + agosto (18/08) + Cruzeiro + Gala + Finados (Mesa das Almas) + elebó/feitura → sustentados pela curimba. Síntese final: Pai Eliseu do Ogum e Pai Vinicius de Oxalá são troncos fundacionais da Linha Cruzada → sem eles não há Quimbanda com corte. Mãe Ieda legitima sua genealogia iniciática ligando-se a Eliseu. Vinicius marca a zona norte e o campo Jeje/Ijexá como ponto de origem de uma sacralização mais “completa” de Exu. Dos anos 1960–70, emergem os reformadores (Ieda, Altair, Teresinha), e dos anos 1980+, a expansão regional consolida a Quimbanda afro-gaúcha. Referências: A Quimbanda de Mãe Ieda – Religião “Afro-gaúcha” de “Exus” e “Pombas-gira”. Suziene David. Os Outsiders do além: Um estudo sobre a quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas. Rodrigo Marques Leistner. As religiões afro-gaúchas. Aline Speroni.

As raízes ancestrais estão profundamente entrelaçadas às memórias da alma. Nutrir a memória é cultuar os ancestrais.

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