Quimbanda ancestral | Como a genealogia e o culto aos antepassados reconecta as raízes ancestrais

Quimbanda ancestral | Como a genealogia e o culto aos antepassados reconecta as raízes ancestrais Podemos perceber que a busca por uma Quimbanda Ancestral é um movimento crescente em todo o Brasil. Muitas pessoas têm como objetivo resgatar uma relação de pertencimento com o mundo por meio da retomada da ancestralidade. A Quimbanda, com sua estrutura religiosa de culto a Exus e Pombagiras, torna-se o principal canal de reconexão com essa espiritualidade ancestral. No entanto, quando buscamos informações que nos ajudem a restabelecer essa conexão, muitas vezes esbarramos em um sistema acessível apenas a iniciados ou àqueles que possuem melhores condições financeiras. Mas será que existem formas acessíveis de iniciar essa jornada rumo à ancestralidade de maneira autêntica, verdadeira e, ao mesmo tempo, acessível? Sim, existem! E espero compartilhar aqui uma luz no fim do túnel para todos que possam estar nessa mesma busca. A reconstrução dos caminhos até as raízes ancestrais Árvore genealógica e o choque de retorno Acredito que o primeiro passo para iniciar esse processo de reconexão com a ancestralidade deva partir do núcleo familiar, uma vez que a família é nosso primeiro elo de conexão direta com nossos antepassados, sejam eles divinizados ou não. Até que tenhamos consciência geracional — de um processo de entrelaçamento de vidas, decisões e experiências que definiram as descendências genealógicas e pavimentaram o encontro de nossos pais até que nossa existência pudesse emergir — muitos ancestrais podem manter-se recolhidos na memória inconsciente. A sabedoria ancestral das matriarcas Eu, por exemplo, passei a ter acesso aos meus ancestrais no momento em que iniciei um processo de pesquisa genealógica profunda da minha família, além de um estudo aprofundado sobre a história das regiões onde meus antepassados viveram. Mas isso ocorreu principalmente quando determinei que o centro da minha pesquisa seria a reconstrução da história das matriarcas da família. As mulheres foram aquelas que sofreram todos os tipos de apagamentos, começando pela perda do sobrenome da família de origem quando se casavam e tinham que assumir o sobrenome do marido. Com o passar das gerações, os laços com os ramos matriarcais foram se perdendo, especialmente considerando que as mulheres eram obrigadas a acompanhar o marido — o que muitas vezes significava morar em outro estado ou em cidades muito distantes. Minha avó materna, Antonia Ribeiro, por exemplo, foi afastada de parte da sua família, que em grande parte residia em Lauro Müller, em Santa Catarina. Ela teve que acompanhar meu avô, Omar Blauth, indo residir em Minas do Butiá, no interior do Rio Grande do Sul. As sombras do passado ancestral Mas parte do processo é adentrar as sombras do passado, onde habitam memórias apagadas, ocultadas e, por vezes, enterradas. Minha família, por exemplo, sempre acreditou que o ramo dos Blauth fosse isento de qualquer atrocidade no passado, mas descobri fortes relações com o sistema escravocrata. Encontrei registros, trabalhos acadêmicos, indícios de cultura do compadrio e diversos fatos comprovando que o ramo familiar esteve envolvido com a escravidão. Chamei esse momento de choque de retorno (que inclusive se tornou o título do meu livro). Da mesma forma, encontrei ramos da família ligados aos Pereira — um ramo distante da família Ribeiro, por parte da minha mãe — onde identifiquei registros de Brígida Pereira, que comprou a própria alforria e a de seus filhos, além de ter sido casada com um português, algo surreal se levarmos em conta o período sombrio da escravidão no Brasil. A reconciliação dos laços rompidos Mas há também momentos muito belos, como a reconciliação do meu pai com o ramo patriarcal dele, o ramo dos Ferreira. Meu pai, assim como meus tios, cresceu com muita mágoa do meu avô, Antonio Arlindo Ferreira, pois ele abandonou minha avó com os filhos, o que gerou profunda revolta por parte do meu pai e dos meus tios. Esse sentimento afastou-os de grande parte da família Ferreira. Porém, no processo de busca por um familiar da árvore que pudesse me iniciar na Quimbanda, acabei encontrando Antonio Gilberto Ferreira, então com 75 anos, que mora exatamente na região onde a maioria dos antepassados Ferreira viveu e ainda vive. Gilberto foi meu iniciador e meu feitor na Quimbanda Tradicional Gaúcha, o que me levou a Arroio do Meio, terra dos meus ancestrais. Isso possibilitou que meu pai reencontrasse seu primo, após cerca de 60 anos sem se verem — meu pai sequer tinha lembrança dele, pois era muito criança na última vez em que estiveram juntos. Então, os choques de retorno são catárticos, pois promovem reconciliação com os antepassados e uma poderosa ressignificação da memória. E é esse poder de ressignificação da memória ancestral que restaura o vínculo emocional com a ancestralidade, pois, nesse momento, os aceitamos, queremos tê-los por perto, pois agora os vínculos estão restaurados. Por isso, afirmo que sem memória não há ancestralidade. Ancestrais em terra, pés descalços, vida sofrida A colonização dos ancestrais, uma crítica epistêmica Pode não parecer, mas o processo de colonização foi tão profundo nas tradições de Quimbanda e Umbanda que muitas representações de espíritos ancestrais passaram a se distanciar significativamente da autenticidade de suas identidades originais. Observa-se um epistemicídio — isto é, a redução, apagamento ou substituição de saberes tradicionais — atuando de forma contínua nessas tradições. Isso se evidencia, por exemplo, em correntes contemporâneas que buscam relacionar espíritos ancestrais a modelos de evolução espiritual do kardecismo ou mesmo a estruturas de divindades europeias. Não se trata de negar que determinados ancestrais, em vida, possam ter dominado conhecimentos de outras matrizes culturais e hoje os incorporem como ferramentas espirituais. O problema emerge quando tais saberes, originalmente particulares a uma linhagem ou entidade específica, passam a ser generalizados como normas, critérios iniciáticos ou padrões universais de culto — especialmente em tradições que afirmam honrar ancestrais de território e contexto brasileiro. Um exemplo recorrente é a afirmação: “Maria Padilha tem origem na Espanha.” Embora seja verdade que o culto tenha raízes ibéricas, seu caminho até o Brasil se deu, majoritariamente, através das camadas populares. Não foi apenas a elite
Quimbanda em Porto Alegre e o culto a ancestrais e antepassados

Quimbanda em Porto Alegre e o culto a ancestrais e antepassados Ao mesmo tempo em que vemos uma explosão de pessoas buscando a Quimbanda para ter acesso a feitiços com foco em amarrações e destruição, percebemos surgir um movimento que busca, no culto a Exus e Pombagiras, o resgate da relação com a ancestralidade e a ressignificação com os antepassados. Não busco separar tradições entre certas e erradas, nem entre fundamentadas ou não, pois cada tradição possui suas bases fundantes. Se esses princípios causam efeitos positivos ou negativos, e se de alguma forma ferem valores éticos, cabe às leis dos homens e às leis universais espirituais julgar e punir o que couber a cada um. Acredito que exista uma lei evolutiva espiritual, observável em tradições bantas, por exemplo, nas quais a coesão comunitária, a integração com a natureza e o princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito são pilares fundamentais. Da mesma forma, não “agencio” os ancestrais e antepassados para que utilizem seu poder de ação a fim de prejudicar outros espíritos, sejam encarnados ou desencarnados. Acredito, sim, que existam diversas categorias de espíritos que podem ser manipulados para fins negativos, mas, na Rama dos 4 Caminhos, a coesão espiritual é um pilar que nos fortalece a cada ação, interna ou externa. Pensando em tudo isso, busco compartilhar perspectivas, saberes e conhecimentos, para que pessoas em busca de uma experiência semelhante encontrem um ponto de convergência na Rama dos 4 Caminhos, onde desenvolvemos possibilidades de resgate do pertencimento espiritual, comunitário e ancestral. Como a Rama dos 4 Caminhos pode ajudar você a reencontrar a sua ancestralidade Aqui, na rama, desenvolvemos possibilidades de construção de pertencimento que, em sua quase totalidade, contemplam a busca pelo saber — seja no mapeamento genealógico, no desenvolvimento de uma visão hermenêutica da ancestralidade, nas imersões rituais ou na partilha de saberes do núcleo de estudos e pesquisa. Resgate da árvore genealógica e ancestral É interessante perceber que foi justamente na busca pela história dos meus ramos familiares que resgatei a minha ancestralidade e que os antepassados e ancestrais iniciaram uma retomada de coesão espiritual dentro da família. Hoje, não sou o único dentro da família que tutela a rama: outros ancestrais já se manifestam e começam também a retomar essa coesão espiritual. A busca pela história da família, dentro de uma perspectiva genealógica, é outro pilar da Rama dos 4 Caminhos, pois, a partir dela, cavamos não apenas nas profundezas da nossa relação com as sombras familiares, mas também com as sombras de toda a família. É nesse processo que vivenciamos diversos choques de retorno, o que é fundamental para a conscientização das dívidas e responsabilidades herdadas de nossos antepassados. Utilizo minha própria família como exemplo: um dos ramos foi escravocrata, suprimindo a existência de outros. Uma série de atrocidades se entrelaçou em escolhas que pavimentaram a nossa existência presente. Precisamos resgatar a história daqueles esquecidos, apagados, assassinados — que sofreram diversas crueldades das quais muitos de nossos familiares participaram como executores — e cabe a nós recontar essa história, ressignificando nossa relação com o passado. Assim como no meu caso, encontrei também diversos familiares negros que foram escravizados e ex-escravizados, que resistiram a toda essa onda obscura da bestialidade humana e que também pavimentaram os caminhos para a existência da minha família. Nesse processo, os antepassados começaram a se manifestar, pedindo oferendas; os ancestrais também passaram a se manifestar — como Exus, Pombagiras, Encantados —, iniciando essa retomada de coesão ancestral que hoje é base e pilar fundante da Rama. Aqui, na Rama, você é instigado, estimulado e conduzido a esse resgate genealógico, que remodela profundamente as relações familiares e com os antepassados, pavimentando o presente para que os ancestrais passem a se manifestar em sua vida. Construir uma visão mais hermenêutica da ancestralidade O saber é um processo em constante construção, o que nos conduz a uma ampliação de conhecimentos que nos ajuda a aprofundar e construir uma compreensão mais plena das experiências com a ancestralidade. Na Quimbanda Gaúcha, por exemplo, em um primeiro momento pode parecer difícil mapear uma cosmologia, já que a tradição se origina de um movimento de disrupção, no qual a linha da esquerda se descola da Umbanda e se fundamenta, em grande parte, em saberes e fundamentos do Batuque. Mas, ao mesmo tempo em que isso pareça difícil, acaba ocorrendo uma fusão ampla, já que o Batuque, diferente do Candomblé — onde as nações priorizaram manter as tradições restritas a cada uma delas —, apresenta uma fusão entre as nações. Assim, podemos ver, por exemplo, voduns cultuados junto a orixás. Essa fusão de tradições é a atmosfera onde a Quimbanda Gaúcha surge; por isso, vemos nos pontos cantados antigos uma forte relação de Exus e Pombagiras com orixás e voduns. Um exemplo muito evidente dessa fusão é o ponto: “Bará da rua, Bará Exu, Bará da rua, saravá Destranca Rua.” No Batuque, o Bará da Rua é o Bará Lodê, apontado como um Bará responsável pela proteção da casa, junto com Ogum Avagã, que é um vodum. Os batuqueiros mais antigos dizem que Bará Lodê e Ogum Avagã utilizam os Exus e Pombagiras para diversos trabalhos de proteção da casa, o que reforça essa relação de troca e compõe uma cosmologia muito ampla. É através do desenvolvimento de uma visão mais hermenêutica que buscamos resgatar a historicidade dos cultos, bem como uma perspectiva teológica, que também auxilia muito no entendimento da nossa relação com o sagrado, além da importância e da estrutura ritual. Não posso deixar de citar a psicologia da religião, onde nos aprofundamos na relação do culto aos ancestrais em uma dimensão psíquica, compreendendo a importância da ancestralidade no desenvolvimento de nossas virtudes e potencialidades rumo a um estado de espírito pleno. Aqui, na Rama dos 4 Caminhos, o saber é construído a partir da reflexão da vivência sob uma ótica multifocal, para abordar a experiência da forma mais completa possível. Participar do Núcleo de estudos e pesquisa ancestral O Núcleo de
Quimbanda em Porto Alegre, uma oportunidade de conectar-se com sua ancestralidade

Quimbanda em Porto Alegre, uma oportunidade de conectar-se com sua ancestralidade A ancestralidade em terra gaúchas A Quimbanda no Rio Grande do Sul não é apenas uma modalidade ritual: é uma expressão religiosa autônoma, dotada de fundamentos próprios e de uma vitalidade única no cenário brasileiro. Mais que uma “linha de trabalho”, ela representa um culto independente a Exus e Pombagiras, estruturado em teologia, rito e cosmovisão próprios (Giumbelli & Almeida, 2021). O presente texto busca aprofundar a compreensão da Quimbanda afro-gaúcha, revelando suas origens, rituais e fundamentos, e destacando a importância histórica de Porto Alegre como seu principal polo formador. 1. A Formação Histórica: A Linha Cruzada e o Berço Gaúcho A Quimbanda afro-gaúcha emerge em um contexto de forte influência do Batuque — o culto jeje-nagô do Sul — e da Umbanda, resultando no que se convencionou chamar de Linha Cruzada: o cruzamento de fundamentos entre ambas as tradições. 1.1 O Contexto de Cruzamento e a Autonomia Ritual A Linha Cruzada surgiu no final dos anos 1950 como um ponto de encontro entre o Batuque e a Umbanda (Leistner, 2014). A Quimbanda gaúcha, entretanto, transcendeu esse cruzamento, alcançando independência ritual e deslocando Exus e Pombagiras do papel subalterno que ocupavam na Umbanda. Ressignificação: A Quimbanda reformulou a presença de Exus e Pombagiras, transformando-os de entidades marginais em forças centrais de culto. Centralidade: O eixo ritual passou a girar em torno das feituras de Exus, com assentamentos, oferendas e cortes sacrificiais análogos aos dos Orixás (Regis & Lages, 2024). Herança do Batuque: O ato sacrificial — o corte — é um dos fundamentos herdados do Batuque, garantindo a vitalidade dos assentamentos e selando a autonomia da religião. 1.2 Lideranças e Consolidação em Porto Alegre A consolidação da Quimbanda afro-gaúcha está ligada a figuras históricas que lhe deram forma e legitimidade. Mãe Ieda de Ogum: pioneira em Porto Alegre nas décadas de 1950-60, reorganizou ritos, cosmologias e valores éticos da nova tradição (Silva, 2008). O Exu da Alta: seu Exu das Sete Encruzilhadas, conhecido como Seu Sete, tornou-se símbolo da ascensão social e espiritual dos Exus, exibindo poder e requinte — a chamada estética do Exu da Alta (Leistner, 2014). 2. Rituais de Iniciação e o Culto à Ancestralidade A iniciação é o rito de passagem que sela a entrega do fiel ao espírito e conecta sua linhagem viva à linhagem ancestral. É um momento de renascimento e reintegração à comunidade espiritual (Regis & Lages, 2024). 2.1 A Cerimônia Iniciática O processo iniciático envolve uma teia de relações entre espíritos, objetos, plantas, animais e fluidos. Não há um modelo único: cada casa guarda seus segredos. Em geral, a iniciação compreende consultas oraculares, banhos de limpeza e oferendas, culminando na entrega do adepto ao seu espírito regente. Vontade e Oráculo: a adesão parte da vontade do adepto, mas deve ser confirmada pelo oráculo do Guia-Chefe. Ancestralidade e Vínculo: Exus e Pombagiras são expressões da ancestralidade pessoal do médium, e a iniciação é o elo entre ambos. Assentamento e Mão de Faca: o assentamento fixa a força do espírito; a mão de faca concede ao sacerdote o poder de alimentar essa força com o sacrifício. 2.2 A Ética da Ação Na Quimbanda, não existe a busca pela “evolução espiritual” nos moldes kardecistas. O foco é a vida presente, a transformação concreta. O poder dos Exus e Pombagiras é imanente: nasce da troca, da oferenda, do ato. 3. Autoridade, Hierarquia e Diferença A Quimbanda afro-gaúcha possui uma hierarquia complexa, em que autoridade, experiência e ancestralidade se entrelaçam. Coexistência dos Cultos: muitos terreiros abrigam Batuque, Umbanda e Quimbanda sob o mesmo teto, preservando distinções simbólicas e estéticas (Bernardo, 2021). Hierarquia Viva: a autoridade circula entre pessoas e entidades — pais e mães de santo, filhos mais antigos e as próprias entidades chefes. Curvar-se diante de um Exu é também reverenciar o poder da linhagem espiritual. 4. O Enigma Gaúcho: Exposição e Reconhecimento A Quimbanda é declaradamente cultuada no Rio Grande do Sul — um fenômeno raro no Brasil, onde historicamente foi marginalizada. Vitalidade e Números: em 2010, cerca de 28% das casas afro-gaúchas declararam praticar a Quimbanda (Giumbelli & Almeida, 2021). Visibilidade: rituais, fotografias e o uso de mídias digitais ampliaram o reconhecimento público da religião. Exus e Pombagiras são assumidos como agentes de transformação e senhores do liminar, convertendo o que é rejeitado em potência criadora. 5. A Força Inovadora da Tradição Afro-Gaúcha A Quimbanda afro-gaúcha é um testemunho de resistência, criatividade e autonomia. Sua teologia é voltada à ação, ao poder ancestral e à resolução dos desafios da vida concreta. Ao transformar o estigma em força, ela afirma uma identidade afro-gaúcha original e viva, que continua a se expandir e reinventar. Genealogia ancestral na Quimbanda da Rama dos 4 Caminhos Sementes Despertas: A Ancestralidade como Raiz Viva Vivemos em um país miscigenado, onde o apagamento histórico dos povos originários e das populações escravizadas impossibilitou a preservação da memória de inúmeros antepassados. Negros e indígenas escravizados foram privados de seus nomes de origem e submetidos a um processo de embranquecimento cultural, o que ainda hoje representa uma barreira para o resgate histórico, cultural e religioso dessas linhagens. Durante a pesquisa de minha árvore genealógica, deparei-me com registros que mencionavam apenas o primeiro nome dos escravizados, revelando uma cultura em que esses homens e mulheres eram tratados como propriedade, e não como pessoas com direito à linhagem. Em diversos períodos da história, observa-se um processo de rebatização, no qual os escravizados eram batizados por seus senhores, recebendo o sobrenome de seus algozes. Essa prática — conhecida como compadrio — servia como instrumento de controle, mascarando o cerceamento de direitos sob a falsa ideia de integração familiar. Tal mecanismo foi amplamente utilizado pelos escravocratas em momentos cruciais, como na promulgação da Lei do Ventre Livre, ou em contratos de trabalho vinculados a empréstimos para alforria, que impunham anos de servidão em troca da própria liberdade. Na Rama dos Quatro Caminhos, o resgate da árvore genealógica é um ato sagrado de reconstrução da memória,
Árvore genealógica como pilar iniciático na Quimbanda Gaúcha da Rama dos Quatro Caminhos

Árvore genealógica como pilar iniciático na Quimbanda Gaúcha da Rama dos Quatro Caminhos O resgate histórico dos ramos da minha família constitui as bases fundantes da Rama dos Quatro Caminhos como tradição — algo que se entrelaçou diretamente ao meu processo iniciático na Quimbanda Gaúcha. Meus ancestrais tutelares, a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra, assim como o Senhor Caveira (encantado) e o Senhor João Caveira, só se manifestam dentro de uma quebra das fronteiras colonizadoras que apagaram a identidade e a história de muitos dos meus antepassados. Como todo mestiço brasileiro, sou fruto de mundos e dimensões de realidades antagônicas, pois, em um mesmo espaço, conviviam forças opostas — senhores de fazenda escravocratas e negros e indígenas escravizados. O choque de retorno às raízes antepassadas desfaz a ilusão romântica de um passado sem culpa. E é com essa visão de mundo em processo de correção que, da escuridão da alma, passam a emergir forças adormecidas, que se tornam vias de reconexão com uma ancestralidade viva, carregada na memória que pulsa em nossas veias. Essa nova visão de mundo, agora desmistificada, amplia o nosso alcance espiritual — não como uma habilidade ou capacidade adquirida como prêmio por um grau iniciático conquistado, mas pela reintegração a uma comunidade ancestral, na qual deixamos de ser um e nos tornamos muitos: uma família que ultrapassa o tempo e conecta memória, natureza, vida e morte, visível e invisível, sagrado e profano, dia e noite, positivo e negativo. É por meio desses ancestrais que as fronteiras da existência deixam de ser físicas e passam a ser espirituais, onde reinados são construídos com as pedras da memória, estradas são abertas pelas raízes ancestrais, e a vida se torna o ponto de convergência presente entre o passado e o futuro. Nossos ancestrais são os agentes mágicos, sábios e líderes nessa retomada ancestral e, como ancestrais, pertencem a este território — o que nos permite resgatar identidade e pertencimento. Por isso, na Rama dos Quatro Caminhos, é pilar do processo iniciático que o neófito mergulhe em uma jornada de resgate da própria ancestralidade, em que o mapeamento histórico e genealógico serve como bússola e guia do caminho. A quimbanda como resgate de pertencimento Quando falamos de Quimbanda, Umbanda, Batuque, Candomblés e demais religiões e tradições afro-indígenas, estamos nos inserindo em um território de ancestralidades, onde costumes, comportamentos, realidades sociais e religiosidades estavam intensamente entrelaçados à natureza — ou eram vivenciados em contextos de extrema pobreza e marginalização. Não é possível imaginar uma ancestral Pombagira que traga, em seu bojo de sabedoria, a imagem de uma mulher branca europeia, moldada pelo padrão de estética branca. Se os detentores dos saberes de feitiçaria eram negros e indígenas, a estética, os costumes e as realidades eram outros. Roupas simples, por vezes em trapos, eram os únicos tecidos disponíveis para cobrir o corpo. Por isso, imaginar que uma Pombagira — um espírito ancestral — exija vestes de alto valor, distantes da realidade que viveu e da realidade do iniciado, não encontra ressonância na ancestralidade afro-indígena. É importante lembrar o aspecto do custo: certas dores são privilégios. É melhor chorar de tristeza com a barriga cheia do que chorar de fome. A Quimbanda é pé no chão, mão nas raízes, é o suor sofrido sob o sol causticante daqueles que abriram caminhos de realização. A Quimbanda é entrega — onde o medo grita e o sangue cala. Não há território mais visceral do que o chão onde Exu e Pombagira se manifestam. Por isso, esse é um espaço em que o iniciado é reintegrado a sua ancestralidade, um território que perturba as sombras da alma, mas também traz à luz da consciência a presença do sagrado. O entrelaçamento da Quimbanda Gaúcha com a Rama dos 4 Caminhos Após decidir que me iniciaria na Quimbanda, busquei tradições que me permitissem reconectar com meus ancestrais de forma mais verdadeira. Essa busca me levou às tradições de Quimbanda de influência bantu, especialmente às tradições Bakongo. No entanto, a centralização dos sacerdotes no eixo São Paulo–Rio de Janeiro se tornou um grande dificultador. Foi então que decidi revisitar a tradição da Quimbanda Gaúcha sob uma nova perspectiva, pois eu mesmo havia erguido uma grande barreira entre mim e essa possibilidade. Nesse momento, os ancestrais começaram a sinalizar que esse era um caminho genuíno — para mim e para eles. Aprofundando minha busca, procurei em minha família algum sacerdote de Quimbanda e descobri que um primo distante de meu pai poderia me iniciar. Assim, em setembro de 2025, fui até Arroio do Meio para ser iniciado pelas mãos de Antônio Gilberto Ferreira, meu primo de segundo grau, um senhor de 75 anos, iniciado pela saudosa Mãe Zila de Xapanã. Mãe Zila carregou mais de 52 anos de culto aos Orixás, Exus e Pombagiras, tendo recebido e sustentado seu legado com dignidade e fé. Curiosamente, Mãe Zila viveu no mesmo bairro onde cresci — uma ironia do destino, ou, melhor dizendo, obra de Exu. Eu havia colocado também uma grande barreira entre mim e meu bairro de infância, mas foi justamente de lá que o axé, a força e a tradição chegaram até mim pelas mãos de Gilberto. Todo esse processo iniciático se entrelaçou em uma jornada de resgate ancestral — em terras onde muitos dos meus antepassados viveram, morreram e estão enterrados. Isso me traz um valor de legado incalculável, impossível de ser medido em outra experiência. Ainda há muito o que explorar e resgatar em Arroio do Meio, dentro da construção da Rama dos Quatro Caminhos, pois é uma região de muita mata — e o Reino das Matas é um dos pilares de nossa tradição. Foi ali que muitos antepassados escravizados e ex-escravizados viveram, sobreviveram e abriram caminhos, para que, nesse entrelaçamento de destinos, eu viesse ao mundo e retornasse — para, no presente, dar início à nossa tradição. Um fundamento plantado na quimbanda da Rama dos 4 Caminhos Na Rama dos Quatro Caminhos, realizamos diversos rituais de integração com a ancestralidade.
Quanto custa uma iniciação na Quimbanda? Uma crítica social

Quanto custa uma iniciação na Quimbanda? Uma crítica social Antigamente era diferente Quando escutamos “antigamente”, nos vemos em uma zona de conflito entre tradições, entre antigos e novos sacerdotes, mas, acima de tudo, em um conflito entre a história feita e a história em construção — e, no meio disso tudo, a preservação da ancestralidade em suas diversas perspectivas: cultural, genealógica e religiosa. Há uma disputa por protagonismo, autoridade, visibilidade e reconhecimento. Escutei de um babalorixá do Batuque gaúcho que, em seu processo de iniciação — que levou sete anos —, um dos ritos exigia o sacrifício de um peixe vivo sobre um otá. Hoje, essa mesma mãe de santo utiliza o sumo de ervas no lugar do sacrifício. Segundo o relato, isso ocorre porque, na época, era possível conseguir peixes vivos por intermédio de pescadores na beira do Guaíba; hoje, isso se tornou inviável, para não dizer impossível. Dentro desse contexto, até podemos compreender a modificação de um ritual tão importante, mas a preservação do fundamento deve ser passada adiante como prioridade, e não como alternativa. Algo que esse mesmo babalorixá diz não ver acontecendo em diversos ritos e comunidades batuqueiras — e o mesmo se observa dentro da Quimbanda tradicional gaúcha. Na minha busca pela iniciação na Quimbanda, tive a fundamentação dos assentamentos dos meus tutelares — a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra — feitos da forma como os assentamentos de Exu e Pombagira eram estruturados há mais de cinquenta anos. Isso me permitiu perceber a desproporção dos assentamentos feitos hoje dentro do que se chama de Quimbanda tradicional gaúcha. Muitos dizem que a quantidade de itens fortalece o assentamento. Eu não posso afirmar que sim nem que não, mas o que tenho aprendido pela experiência de cultuar Exu e Pombagira é que o que define um assentamento como morada de poder de um ancestral é se ele responde. O assentamento pode conter ouro e diamantes, mas, se não responde, ali não é a morada de um ancestral — seja Exu, Pombagira, caboclo ou preto-velho. Essa resposta pode se manifestar de diversas formas: por sonhos, realizações materiais, visagens, sons — enfim, pela presença palpável dos ancestrais. Um assentamento simples, mas fundamentado, estabelece um canal efetivo entre o iniciado e o ancestral, tornando-se uma verdadeira morada de poder, especialmente quando o iniciado mantém o culto vivo. E é aqui que identificamos um pilar essencial: é na simplicidade que reside a garantia da fé verdadeira. O que alimenta o elo entre o iniciado e o ancestral não é o luxo do assentamento, mas a regularidade do culto, a manutenção ritualística simples, porém resignada. Hoje não vemos fundamentos adaptados, mas fundamentos reinventados Não vemos mais fundamentos adaptados; vemos novos fundamentos criados. E não tenho a pretensão de julgar se esses novos fundamentos são verdadeiros ou eficazes. Eu mesmo defendo a criação de ritos, interpretações de mitos e novos processos iniciáticos, mas também defendo a preservação da tradição, que deve ser a prioridade e o coração pulsante do culto. Na Rama dos 4 Caminhos, buscamos uma relação mais direta com o Reino das Matas, o que nos leva a assimilar diversos conhecimentos ritualísticos, validados junto aos ancestrais e testados em sua efetividade pela comunidade. Mas, no centro disso tudo, pulsa o coração dos assentamentos fundamentados dentro da tradicional Quimbanda gaúcha. Meu feitor na Quimbanda, meu primo de segundo grau, Antônio Gilberto Ferreira, um senhor de 75 anos, costuma dizer: “Antigamente, a orientação era cortar para o Exu e a Pombagira tutelares uma vez por ano. Hoje, um iniciado parece mais um sócio de um matadouro.” A relação com Exu e Pombagira é mantida quase exclusivamente pelo sangue, enquanto padês, comidas e bebidas simples são descreditadas como oferendas aceitas pelos ancestrais. Quando algo é demais, perde o valor; o excesso se torna soberba, arrogância e, por fim, prepotência — uma armadilha perigosa para qualquer quimbandeiro. Quando o disponível era a fenda para o invisível Durante minha pesquisa, identifiquei que os elementos centrais nas fundamentações de ancestrais Exus e Pombagiras eram de acesso simples e, muitas vezes, sem custo para os iniciados. O uso de sementes, terras, ossos, pedras, água, ervas e o sacrifício de um galo, galinha ou até mesmo um pombo eram os principais elementos utilizados. As próprias guias eram feitas com esses materiais naturais. Talvez os elementos de metal fossem os únicos que exigiam algum custo, pois eram difíceis de conseguir e caros — além de um ferreiro ser inacessível às camadas mais pobres. Diante disso, é inconcebível imaginar colocar ouro, prata e pedras preciosas em um assentamento. Não que o ancestral não mereça, mas isso não condiz com a realidade das classes populares — nem hoje, nem nas épocas fundantes do culto aos ancestrais brasileiros. A abolição da escravidão foi em 1888 — não é tão distante assim. Era um esforço sem precedentes um escravizado comprar sua alforria, para não dizer um milagre. Imaginar hoje uma política religiosa baseada em exageros contraria as bases fundantes do culto aos ancestrais e à natureza como via de acesso. Não à toa, chamamos de raízes ancestrais. Onde há exagero, falta simplicidade; onde falta simplicidade, falta essência. Quando o sal do suor era o pagamento de maior valor Hoje, não é o suor que define um iniciado, mas a aquisição. Criaram-se sistemas e processos que parecem uma escada comprada para o paraíso. E a história já nos mostrou: bolsos pesados caem. A ganância, a vaidade e o egoísmo moldam um caminho solitário rumo ao abismo. Isso não é uma moral cristã ou kardecista — as bases das tradições afro-indígenas se firmam na coesão comunitária, na integração com a natureza e no princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito. Muitos, porém, justificam práticas bélicas e capitalistas sob o argumento de que as tradições ibéricas também influenciaram as macumbas, como a Quimbanda e a Umbanda. Mas isso é mentalidade colonizadora — e é preciso estar muito cego para não perceber. Se assumíssemos os pilares ético-filosóficos das tradições afro-indígenas
Quimbanda afro-gaúcha: Tradições e rituais únicos em Porto Alegre

Introdução: A singularidade da quimbanda no campo afro-gaúcho A Quimbanda no Rio Grande do Sul não é apenas uma modalidade ritual; ela é uma expressão religiosa que alcançou um estatuto sem par no restante do Brasil, designando o culto proeminente de Exus e Pombagiras (Giumbelli & Almeida, 2021). Longe de ser uma mera “linha de trabalho” ou uma categoria de acusação associada à magia negra, como ocorreu em outros contextos, a Quimbanda gaúcha, ou afro-gaúcha, constituiu-se como um sistema religioso autônomo, com rituais e fundamentos próprios. Este artigo se propõe a desvendar as tradições e os rituais únicos que moldaram a Quimbanda em Porto Alegre. Analisaremos como a sua formação se deu a partir da Linha Cruzada, o papel de lideranças históricas como Mãe Ieda de Ogum, e como os rituais de iniciação e a estrutura de autoridade refletem a complexidade e a vitalidade dessa religião na capital gaúcha. 1. A formação histórica e a linha cruzada: O berço gaúcho da quimbanda A Quimbanda afro-gaúcha emerge em um cenário religioso peculiar, marcado pelo enraizamento do Batuque (o culto jeje-nagô do Sul) e da Umbanda. Sua gênese está intimamente ligada ao conceito de Linha Cruzada, que se tornou um elemento estrutural da religiosidade afro-gaúcha. 1.1. O contexto de cruzamento e a autonomia ritualística A Linha Cruzada surge, aproximadamente no final dos anos 1950, como uma aproximação entre o Batuque e a Umbanda (Leistner, 2014). No entanto, o que a Quimbanda gaúcha fez foi ir além desse cruzamento, alcançando uma independência ritualística e deslocando Exu e Pombagira do espaço subalterno que a Umbanda lhes reservava. Deslocamento de Status: A Quimbanda gaúcha se desenvolveu a partir da ressignificação da presença dissimulada dos Exus e Pombagiras na Umbanda. Ela se estabeleceu não mais como uma linha subordinada, mas como um sistema de crenças e uma estrutura ritual renovados (Leistner, 2014). A Centralidade do Culto: A Quimbanda gaúcha é a modalidade ritual que se concentra no culto específico de Exu e Pombagira (Regis & Lages, 2024). Isso se manifestou na feitura de Exus, com procedimentos análogos aos assentamentos de Orixás, incluindo oferendas e sacrifício de animais, o que lhes conferiu a autonomia necessária para que a religião se centrasse ao seu redor (Leistner, 2014). A Influência do Batuque: Diferentemente da Quimbanda do Sudeste, que se desenvolveu em um contexto mais umbandista, a Quimbanda afro-gaúcha buscou nas fundamentações do Batuque a base para sua estruturação. O ato sacrificial, o corte, é um elemento que a Quimbanda Gaúcha herdou do Batuque e que se tornou um fundamento essencial para a alimentação e a vitalidade dos assentamentos de Exus e Pombagiras. 1.2. Lideranças e a consolidação em Porto Alegre A consolidação da Quimbanda afro-gaúcha está ligada a figuras históricas que inovaram e deram novas perspectivas para o culto na região Sul. Mãe Ieda de Ogum: Uma das figuras precursoras é Mãe Ieda de Ogum, cujo trabalho se iniciou nos anos 1950-60 em Porto Alegre (Regis & Lages, 2024). Ela foi uma das primeiras quimbandeiras de Porto Alegre e suas inovações cerimoniais foram decisivas para a reorganização dos aspectos cosmológicos, rituais e éticos da forma religiosa emergente (Leistner, 2014). Sua influência é tamanha que seu trabalho é objeto de estudo etnográfico (Silva, 2008). O Exu da Alta: O Exu de Mãe Ieda, Exu das Sete Encruzilhadas, ou “Seu Sete”, adquire uma nova performance que se afasta da subalternidade dos Exus da Umbanda. Ele se apresenta de forma requintada, com vestes e objetos votivos de alta qualidade, o que é denominado de Exu da Alta (Leistner, 2014). Isso não se refere à evolução espiritual, mas a uma questão de ascensão social, autonomia e poder (Leistner, 2014). 2. Rituais únicos: A iniciação e o culto à ancestralidade A ritualística da Quimbanda afro-gaúcha é o que a distingue e lhe confere sua força vital. A iniciação, em particular, é o rito de passagem que sela a entrega do fiel ao espírito e é um momento de resgate de memória e celebração de expansão (Regis & Lages, 2024). 2.1. A cerimônia de iniciação: Renascimento e expansão A iniciação na Quimbanda afro-gaúcha é um processo complexo e vital que envolve uma rede potente de relações entre deuses, espíritos, objetos, vegetais, animais e fluidos (Regis & Lages, 2024). Essa cerimônia é a que, por excelência, revitaliza e expande a religião, sendo um aceno para o passado e para o futuro, ligando a ancestralidade do adepto ao seu renascimento religioso (Regis & Lages, 2024). O ritual não é padronizado, variando de casa para casa, mas é compreendido como o modo pelo qual o corpo do adepto se torna um composto relacionado de forma intensa com as alteridades. O processo de iniciação sela a entrega do fiel a determinado espírito e, de forma geral, inclui a consulta oracular, banhos de limpeza espiritual e oferendas de alimentos (Regis & Lages, 2024). A cerimônia de iniciação é um momento de profunda transformação, onde o adepto é confrontado com a sua ancestralidade e com o poder dos Exus e Pombagiras. Ela é uma celebração da expansão, na qual espíritos e pessoas se encontram nas encruzilhadas da identidade e da ancestralidade, resgatando a memória e a história da religião (Regis & Lages, 2024). O desenvolvimento mediúnico, por sua vez, não se restringe à iniciação, mas se dá durante as convivências nos rituais da casa, como obrigações coletivas ou individuais e assistência em outras cerimônias (Regis & Lages, 2024). O processo é, portanto, contínuo e integrado à vida comunitária do terreiro. Vontade e Oráculo: A iniciação parte da vontade da pessoa ou da indicação do Guia Chefe do Templo. É a consulta oracular que irá confirmar a adesão da pessoa, e não há um tempo determinado para o processo, podendo levar anos ou alguns dias (Regis & Lages, 2024). Ancestralidade e Vínculo: A diferença com a Umbanda é que, na Quimbanda, Exus e Pombagiras estão intimamente ligados à ancestralidade do médium. A iniciação liga a ancestralidade do adepto ao seu renascimento religioso (Regis & Lages, 2024). O Assentamento e a Mão de Faca:
Quimbanda em Porto Alegre: História, fundamentos e a realidade gaúcha

Introdução: O mistério e a força da quimbanda no sul do Brasil A Quimbanda, muitas vezes envolta em mistério e estereótipos, é uma das mais vibrantes e complexas manifestações da religiosidade afro-brasileira, especialmente no Rio Grande do Sul. Longe de ser apenas um apêndice ou uma “linha de trabalho” de outras religiões, ela se estabeleceu como um campo religioso autônomo, com fundamentos, rituais e uma teologia própria que refletem a rica história de cruzamentos e resistências da diáspora africana na região. Porto Alegre, a capital gaúcha, é um epicentro fundamental para a compreensão da Quimbanda, onde ela floresceu em um contexto cultural único, o afro-gaúcho, em íntima relação com o Batuque e a Umbanda. Este artigo pilar se propõe a mergulhar profundamente na história, nos fundamentos e na realidade gaúcha da Quimbanda, desmistificando preconceitos e celebrando a força ancestral que move essa tradição. Nosso objetivo é fornecer um guia completo e aprofundado, com uma densidade informativa que honre a complexidade do tema, servindo como a principal referência para a palavra-chave “quimbanda em porto alegre”. 1. O que é quimbanda? Definição, origens e distinções Para entender a Quimbanda em Porto Alegre, é crucial estabelecer uma base conceitual sólida sobre o que ela representa no cenário religioso brasileiro. 1.1. A etimologia e o conceito: Kimbánda, magia e conhecimento ancestral A palavra “Quimbanda” (ou Kimbanda) possui raízes bantas, remetendo ao termo kimbánda, que no quimbundo (língua falada em Angola) designa o curandeiro, o sacerdote, o especialista em rituais e feitiços. É, portanto, um termo que carrega a ideia de magia, cura e conhecimento ancestral. No Brasil, o termo passou por um processo de ressignificação e, a partir do século XX, começou a ser usado para designar a religião que cultua as entidades conhecidas como Exus e Pombagiras. A própria grafia “Kimbanda” é considerada a mais próxima da origem banta e é frequentemente utilizada para designar as tradições que buscam resgatar essa raiz, como é o caso da Quimbanda Gaúcha. 1.2. As origens históricas e a matriz africana: A força da diáspora A Quimbanda não surgiu do nada; ela é um resultado direto da criatividade e da resistência africana e afro-brasileira. Suas origens estão intrinsecamente ligadas aos cultos de ancestrais e aos saberes mágicos trazidos pelos povos bantos, iorubás e de outras etnias escravizadas. Influência Banta: A matriz banta é inegável, tanto na etimologia do nome quanto na ênfase no culto aos ancestrais e na magia. A busca por essa raiz ancestral é um movimento de resgate da memória e da dignidade. A Figura de Exu: A Quimbanda se estrutura em torno da figura do Exu, que, embora distinto do Orixá Exu do Candomblé e do Batuque, compartilha a função de mensageiro, guardião dos caminhos e senhor da encruzilhada. A Quimbanda lida com a força do Povo da Rua, que são os espíritos que atuam nos limites, nas zonas de transição entre o mundo dos vivos e dos mortos. O “Lixo Simbólico” e a Autonomia: A Quimbanda, em seu processo de formação, incorporou elementos que eram rejeitados ou marginalizados por outras religiões, como o catolicismo e até mesmo a Umbanda em suas fases iniciais. O pesquisador Rodrigo Marques Leistner em sua tese Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas (2018), aponta para a Quimbanda como um universo religioso que assume como positivo e constitutivo de sua religiosidade “todos os resíduos rejeitados pelas demais confissões” [Leistner, 2018, p. 18]. Essa característica de incorporação do “lado sombrio” ou “marginal” é um traço de sua força e autonomia, polarizando-se com as concepções do sagrado típicas da tradição ocidental e com outras religiosidades. 1.3. Quimbanda vs. Umbanda: Entenda as diferenças e a complexidade Uma das maiores confusões conceituais é a distinção entre Quimbanda e Umbanda. Embora ambas sejam religiões afro-brasileiras e compartilhem o culto a Exus e Pombagiras, seus fundamentos e práticas são distintos, especialmente no contexto gaúcho: Característica Quimbanda Umbanda Foco Principal Culto a Exus, Pombagiras e Povo da Rua (ancestrais e espíritos de poder). Ênfase na magia, na transformação e na ação direta. Culto a Orixás e a diversas linhas de trabalho (Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças, etc.). Ênfase na caridade, na evolução espiritual e na orientação moral. Natureza da Força Forças da esquerda, da rua, da noite, do cemitério. Lida com a dualidade e a complexidade da vida, atuando na matéria e na resolução de problemas práticos. Forças da direita, da luz, do dia. Busca o equilíbrio e a harmonia, atuando mais na orientação e no conselho. Rituais e Oferendas Uso de bebidas alcoólicas, fumo, elementos de magia (pó, velas pretas/vermelhas). O sacrifício animal (corte) é um fundamento em muitas tradições, especialmente a gaúcha. Uso de velas brancas, flores, frutas, água. O sacrifício animal é raro ou inexistente em muitas vertentes. A Quimbanda se estabelece como uma religião que lida diretamente com as forças de transformação, com a dualidade e com a complexidade da vida humana, sem a necessidade de mascarar ou “branquear” seus fundamentos. Ela assume a sua posição de religião da “esquerda” com orgulho e poder. 2. A quimbanda no Rio Grande do Sul: A força da linha cruzada O Rio Grande do Sul possui um cenário religioso afro-brasileiro com características singulares, e a Quimbanda gaúcha, ou Quimbanda Tradicional Gaúcha (também conhecida como Linha Cruzada), é um dos seus pilares. A formação dessa tradição é um testemunho da capacidade de sincretismo e adaptação das religiões de matriz africana. 2.1. O contexto afro-gaúcho e a fusão com o batuque A Quimbanda Gaúcha se desenvolveu em um ambiente onde o Batuque (o Candomblé do Sul) era a religião de Orixá dominante. Diferentemente do eixo Rio-São Paulo, onde a Quimbanda se formou em um contexto mais influenciado pela Umbanda e pelas macumbas cariocas, no Rio Grande do Sul, a Quimbanda buscou nas fundamentações das tradições do Batuque a base para sua estruturação. A Linha Cruzada: O termo “Linha Cruzada” é fundamental. Ele indica o cruzamento de fundamentos entre o Batuque (culto a Orixás) e o culto a Exus e Pombagiras, dando
A Quimbanda e o culto aos ancestrais e antepassados na Rama dos 4 Caminhos | Quimbanda Porto Alegre

A Quimbanda e o culto aos ancestrais e antepassados na Rama dos 4 Caminhos É importante mergulhar na imensidão dos cruzamentos de saberes das tradições afro-gaúchas para assimilar o horizonte do que é a Quimbanda gaúcha e o seu espectro de alcance teológico, ritual, litúrgico e histórico. A Quimbanda no Rio Grande do Sul, diferente de outras tradições quimbandeiras do eixo Rio–São Paulo — que mantiveram proximidades com influências Congo-Angola e com tradições como as macumbas cariocas, fortemente marcadas pela Cabula e pelos Calundus —, buscou nas fundamentações das tradições do Batuque a riqueza de elementos fundantes da sua própria estrutura religiosa. Percebemos que diversas casas tradicionais de Quimbanda buscaram elementos do culto ao orixá Bará como base para a estruturação de assentamentos e oferendas a Exus e Pombagiras. Isso é evidenciado em trabalhos como “Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas”, de Rodrigo Marques Leistner, onde sacerdotes como Pai Eliseu do Ogum e Pai Vinícius de Oxalá são citados como lideranças que participaram da formatação da Linha Cruzada. Foi nesse contexto que casas de Batuque, que já possuíam em suas tradições a Umbanda, iniciaram o cruzamento de fundamentos, dando origem às bases fundadoras do culto a Exu e Pombagira em uma nova estrutura religiosa independente, na qual o ato sacrificial — o corte — passou a fundamentar os assentamentos dessas entidades. Podemos deduzir que foi dos axés de Bará que as facas comeram sangue pela primeira vez na Quimbanda gaúcha. Essa é uma dedução pessoal, e posso estar enganado, mas parece coerente acreditar nessa perspectiva, uma vez que Bará/Exu também possui um assentamento na rua — o assentamento de Bará Lodê — e, ao pesquisarmos os pontos cantados mais antigos da Quimbanda gaúcha, encontramos inúmeras referências ao “Bará da Rua” associado aos Exus da Quimbanda: Bará da rua, Bará Exu, Bará da rua, saravá Destranca Rua,Destranca Rua, destranca meu caminho, Que foi trancado pelo povo pequenino. No meu castelo tem sete guri (2x),Sete guri que trabalham pra Bará,Sete guri que trabalham pra Exu. Podemos perceber o entrelaçamento de Bará da Rua, ou Bará Lodê, com o campo de ação de Exu na Quimbanda — como se Bará fosse o senhor fundador da Linha Cruzada (ou Quimbanda), o senhor dos Exus e Pombagiras, aquele que detém o poder dos caminhos e que confere a chancela espiritual para essa nova forma de culto. Já ouvi de sacerdotes mais antigos de Nação que Bará Lodê e Ogum Avagã podem, em determinados momentos, utilizar os Exus e Pombagiras para realizarem certos trabalhos em seu nome — como se, nas casas de Linha Cruzada, os Exus e Pombagiras estivessem sob sua tutela, estabelecendo uma relação de troca de poder e de execução espiritual. As bases da Quimbanda gaúcha podem ser consideradas como um oceano profundo e vasto, que se perde no horizonte. Isso porque o Batuque, diferente dos Candomblés que mantiveram-se mais fechados em suas respectivas nações, constitui-se como uma fusão de nações, ainda que preserve particularidades específicas de cada uma. Como assim? Por exemplo: todas as tradições cultuam as mesmas divindades, mas podem apresentar particularidades em suas fundamentações. Assim, encontramos divindades voduns cultuadas como orixás nagôs dentro de uma mesma tradição — o que demonstra a complexidade dos seus rituais, teologias e liturgias. É justamente nesse contexto de cruzamento e sincretismo teológico que nasce a Linha Cruzada, que posteriormente viria a ser conhecida como Quimbanda Tradicional Gaúcha. A outorga passada entre familiares e a fundação da Rama dos 4 Caminhos Cresci na maior periferia do Rio Grande do Sul, em um bairro chamado Restinga, que internamente é dividido em dois hemisférios: a Restinga Nova e a Restinga Velha. Foi nesse bairro que tive meu primeiro contato com as tradições afro-diaspóricas gaúchas, como o Batuque, a Quimbanda e a Umbanda, além de ter sido benzido diversas vezes por uma benzedeira que morava muito próxima da minha casa (preciso descobrir o nome dessa benzedeira). Durante a adolescência, frequentei diversas sessões e festas de Quimbanda na Restinga, sempre encantado pela musicalidade e irreverência de Exu e Pombagira, e também pelo clima de confraternização entre amigos e desconhecidos — um verdadeiro momento de congregação, de fazer inveja a muita igreja. Com o tempo, porém, meu olhar mais esotérico acabou me afastando desse encantamento. Fui me desmotivando ao ver a banalização com que muitas pessoas recorriam à Quimbanda, sempre pedindo vinganças, forçando paixões e atacando quem quer que se colocasse em seu caminho. Ver animais sendo sacrificados com esses propósitos também colaborou para o meu afastamento. Meu distanciamento cresceu ainda mais quando mergulhei na doutrina espírita — o que, mais tarde, percebi ter sido uma armadilha, já que é evidente o enorme preconceito e a ignorância do movimento espírita em relação às tradições afro-indígenas brasileiras. Anos depois, quando conquistei minha independência e saí do bairro, prometi a mim mesmo que nunca mais moraria na Restinga, por conta das constantes guerras entre gangues e facções, além da brutalidade que marca toda periferia no Brasil. Foi nessa mistura de desilusões, medos e falta de conhecimento que mantive minhas perspectivas espirituais e iniciáticas afastadas do bairro. Mas o destino — ou melhor, Exu, e principalmente a Senhora Maria Mulambo Anciã — corrigiu a rota da jornada, ressignificando completamente minha relação com o passado e com a quimbanda tradicional gaúcha. Após muitas tentativas frustradas de buscar uma iniciação em alguma tradição de Quimbanda Congo-Angola, tive um súbito insight de desilusão e me perguntei: “E se eu primeiro não buscar uma iniciação na quimbanda tradicional gaúcha? E se, na minha árvore genealógica, houvesse algum macumbeiro que pudesse me iniciar?” Conversei com meu pai, e ele me sugeriu falar com uma prima de segundo grau, a prima Aida. Ela, no entanto, não poderia me passar a mão de faca nem assentar meu Exu e Pombagira, pois era iniciada apenas no Batuque. Mas me passou o contato de outro primo de segundo grau: Antônio Gilberto Ferreira. E foi aí que o mundo não apenas girou — ele capotou!
Reino das Matas na Quimbanda | Parte 2

Figueira | A árvore mais sagrada da Quimbanda Gaúcha Quem pesquisa profundamente as tradições da Quimbanda gaúcha chega à mesma conclusão: a figueira pode ser considerada a principal representação do axis mundi dessa tradição. Isso tem enorme importância e pode contribuir para a construção de uma cosmologia mais completa da Quimbanda Gaúcha, algo que sabemos ser muito difícil de mapear. A figueira, torna-se uma morada divina, onde habitam divindades como orixás, voduns, eguns e até mesmo linhas de Exus e Pombagiras, como a Pombagira Figueira e o Exu Figueira. Também encontramos diversas associações com Exu Caveira. No Batuque, é dito que sua copa é a morada de Oyá Timboá e Oyá Dirã, divindades consideradas da “rua” e senhoras dos eguns em suas respectivas nações. As figueiras são fundamento na Rama dos 4 Caminhos A Rama dos 4 Caminhos tem como pilar central o levante do feminino dentro das tradições de culto aos ancestrais, algo que, de forma geral, sempre esteve subjugado a um sistema de maior evidência patriarcal. Referimo-nos a aspectos históricos que colocaram as mulheres entrelaçadas ao mal, pervertendo todo o seu poder de transformação e sabedoria divina. O materno, o sedutor, o transformador, o gerador da vida, o nutridor da vida: o feminino é a potência da vida, e reconhecemos que, na terra, é a força ancestral de maior importância. As raízes ancestrais crescem pelo poder gerador da mulher e, nesse aspecto, as figueiras guardam estruturas simbólicas que transformam, gestam e dão vida a diversas formas de poder e sabedoria dentro da nossa rama. Raízes que mantém feitiços e espíritos vivos Muitos sacerdotes de Quimbanda, Umbanda e tradições do Batuque dizem que, em muitas figueiras do território gaúcho, estão enterrados sob suas raízes feitiços, objetos sagrados e pertences de negros feiticeiros, com destaque para feitiços de Pretos-Velhos, havendo até mesmo relatos de Pretos-Velhos que realizavam feitiços negativos (Jaékel Da Rosa, Estefânia, 2019). Muitos afirmam que a figueira é morada de Exus e Eguns, que acabam permanecendo próximos do mundo material por meio dela. Alguns chegam a dizer que a figueira, de certa forma, poderia ser entendida como um balé natural, já que em muitas figueiras encontramos estruturas ocas com buracos no chão em seu interior. Ela também é considerada morada de Ogum Avagã, pois esses buracos são habitat de cobras, animal representativo dessa divindade. Podemos compreender que divindades com domínio sobre as ruas e com atribuições de controle e poder sobre os Eguns encontram na figueira um ponto de força manifesto na natureza. Assim, podemos tirar algumas conclusões: a figueira pode ser entendida como um axis mundi entre os vivos e a ancestralidade, entre o visível e o invisível, um espaço liminar onde espíritos de poder, como Exu e Pombagira, podem realizar o trânsito entre desejo, ação e realização. Também podemos entender que a figueira é uma estrutura de acesso a forças femininas primordiais, o que merece atenção, já que ali podem estar em gestação estruturas de poder. E sabemos que toda mãe é um ser feroz na proteção de seus filhos. O Axis mundi de muitas tradições O povo indigena Nambiquara, do oeste do Mato Grosso e Rondônia, fala sobre a figueira Haluhalunekisu que existe na abóbada celestial. Essa figueira pertence a mulher-espírito e na sua copa mora Dauasununsu, ser sobrenatural conhecedor de todas as coisas. É interessante que para os Nambiquara a figueira celestial sustenta o céu e que suas raízes envolve o mundo de todos os homens. Os wanintesu que são os pajés sobem por suas raízes até Dauasununsu para renovar seus poderes espirituais. No mundo vamos encontrar diversas outras tradições que tem na figueira uma ligação com o divino. Vamos ver no budismo que Sidarta Gautama atingiu a iluminação sob a sombra de uma figueira, assim como outros budas. No hinduísmo, a figueira-de-bengala é vista como um símbolo do Trimurti, formado por Senhor Brahma (o Criador), Senhor Vishnu (o Preservador) e Senhor Shiva (o Destruidor). Segundo a tradição, cada aspecto divino habita uma parte específica da árvore: Brahma está associado às raízes, Vishnu à casca e Shiva às raízes aéreas. Assim, a figueira-de-bengala se torna uma representação viva da presença e equilíbrio dessas três forças cósmicas. Uma fresta de fundamento sagrado Aqui vou deixar uma pontinha de dica, uma fresta de um dos fundamentos da Rama dos 4 Caminhos, como uma fagulha de ímã para estimular a busca por um saber oculto. Na figueira, tudo ganha vida, mas nem tudo gera vida! Aqui, as sementes falam.Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos. Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos. Participe, é totalmente gratuito Núcleo de estudo e pesquisa ancestral O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente. Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios. Instagram Facebook YouTube Linktr.ee E-mail Quero participar do núcleo
Reino das Matas na Quimbanda | Parte 1

Reino das Matas na Quimbanda | Parte 1 Este conteúdo compõe uma série de estudos e pesquisas sobre a Quimbanda. Dentro desse campo, os reinos se apresentam como um aspecto da tradição que desperta o interesse de muitas pessoas, sejam iniciados ou não. No entanto, ao buscar referências na internet, seja em produções de sacerdotes ou em trabalhos acadêmicos de antropologia, teologia ou psicologia da religião, geralmente encontramos apenas pequenas citações ou comentários. Raramente, porém, encontramos conteúdos mais extensos e densos sobre os reinos da Quimbanda. O tema é vasto, pois exige a absorção de muitos conceitos, informações e grande conhecimento para interpretar a densidade simbólica que habita os reinos de Quimbanda. Também considero importante, logo no início, compartilhar um ponto de vista pessoal em relação aos reinos. Entendo que, antes de haver o reino, há a região — e é nessa região que encontramos reinos, ou melhor, realidades que se sobrepõem e que muitas vezes possuem regras próprias. Podemos recorrer a vários exemplos que ilustram bem essa ideia. Os quilombos, por exemplo, dentro de uma mesma região, constituíam reinos próprios, com regras, economia e religiosidade específicas. E, ao mesmo tempo, disputavam território com outros reinos — portugueses, espanhóis, entre outros. O mesmo ocorre com a rua, onde transitam pessoas de diferentes culturas, religiões, idades, gêneros e profissões, criando e exercendo regras de convivência nesses espaços, o que dá origem a sistemas de relações e códigos próprios. Outro exemplo pode ser observado entre os moradores de rua, que desenvolvem uma realidade própria de trânsito e uso dos espaços públicos. Esses casos ilustram como, em uma mesma região, podemos encontrar diferentes regras, códigos morais, estruturas de liderança ou controle, recursos explorados, sistemas de troca e economia, além de diversidade religiosa. Por isso, a região precede o reino “x” ou “y”. E essas realidades podem até mesmo divergir totalmente em escopo social e normativo. Um exemplo disso são os bairros boêmios, onde encontramos diversos espaços físicos que, de certa forma, promovem um relaxamento moral — bares, festas, casas de prostituição, venda de drogas etc. Enquanto isso, em uma mesma área, bairro ou cidade, podemos também encontrar uma coletividade regida por valores cristãos rígidos, em oposição direta à realidade da boemia. Muitas vezes, entretanto, observamos indivíduos transitando de um espaço a outro, sendo mais comum que isso ocorra de ambientes regidos por normas rígidas para aqueles mais flexíveis. Nossa história está repleta de relatos de políticos, servidores públicos e líderes religiosos frequentando bordéis, por exemplo. Geralmente, esse trânsito entre espaços se manifesta em momentos específicos. Dependendo da região, pode ocorrer com maior frequência em determinadas estações, períodos do mês, turnos ou em situações urgentes, como comemorações, rituais ou necessidades de saúde. Nas matas, por exemplo, encontramos toda uma flora que se manifesta à noite, assim como certos animais adaptados à vida noturna, com sentidos e biologia moldados a esse ciclo. Já na boemia, vemos um alto fluxo de pessoas à noite, especialmente após o expediente de trabalho, que aumenta ainda mais em períodos de pagamento de salários. Acredito que tenha ficado claro que a região agrega múltiplos “reinos” e que os agentes de cada reino possuem suas próprias regras e habilidades. No entanto, o reino está sempre alicerçado nas regras da região. É a partir desse aspecto que podemos abrir nossa análise sobre os reinos da Quimbanda. A estrutura geográfica das regiões dos reinos de quimbanda Já parou para pensar como seria a rotina de um quimbandeiro no México, durante um ritual na calunga pequena? Como seria para ele adentrar um cemitério mexicano, em um contexto onde deuses e estruturas culturais estão alicerçados em um culto aos mortos muito particular? E como seria para um quimbandeiro penetrar nas matas do Norte e Nordeste do Brasil, regiões em que observamos a proeminência do culto da Jurema? Imagine um quimbandeiro entrando na mata do Catucá, em Abreu e Lima, no interior de Pernambuco, local onde teria morrido o último integrante dos Malunguinhos — e que talvez seja um dos maiores pontos de força da Jurema. Perceba: são as mesmas regiões, mas com reinos que se sobrepõem! Ambos compartilham elementos estruturais em comum, e o culto — o ritual — se centra nesses elementos. É justamente a partir da análise deles que podemos começar a esboçar uma compreensão mais profunda dos reinos da Quimbanda. A estrutura da região das matas e o Reino das Matas na Quimbanda Estudar a estrutura da região das matas é, antes de qualquer outra abordagem, um aprofundamento no campo da biologia. Podemos começar pelo conceito de bioma, que pode ser: Floresta Amazônica (tropical úmida), Floresta Atlântica, Taiga (boreal), Florestas Temperadas ou Florestas Tropicais Secas. Cada um desses biomas possui um clima próprio — definido por índices de chuva, temperatura e sazonalidade — que determina a sua biodiversidade. Dentro de cada floresta, encontramos diferentes ecossistemas, entendidos como o conjunto de interações entre os seres vivos (plantas, animais, fungos e micro-organismos) e os fatores abióticos (solo, água, clima e luz). E temos algo muito importante no ecossistema que é a interdependência: Ciclo da água (chuvas, transpiração das árvores, rios). Ciclo do carbono (absorção de CO₂ pelas plantas, decomposição da matéria orgânica). Ciclo dos nutrientes (folhas caem → se decompõem → alimentam o solo → sustentam novas plantas). Em florestas tropicais, por exemplo, encontramos a estratificação vertical, ou seja, a organização da floresta em camadas. Na base, temos o estrato herbáceo, o solo florestal, onde se desenvolvem plantas adaptadas à baixa luminosidade, como plantas rasteiras, fungos e musgos. Essa camada também funciona como habitat de uma grande variedade de animais, além de abrigar fungos e bactérias em constante processo de decomposição. A flora é vasta e representa uma importante fonte de recursos e usos. Dentro dela, encontramos grupos de espécies que dependem completamente de sistemas específicos, muitas vezes vinculados diretamente a uma única espécie vegetal. Vamos ter: Árvores: espécies dominantes que formam o dossel. Arbustos e trepadeiras: ocupam o sub-bosque, muitas vezes em competição por luz. Epífitas: plantas que crescem sobre outras
