A Rama dos 4 Caminhos
Sementes despertas ecoam as vozes ancestrais
A Rama dos 4 Caminhos surge a partir de um profundo mergulho na memória ancestral da minha árvore genealógica. Desacreditado da cultura do capital imposta como canal de conexão ancestral nas tradições da quimbanda, embarco em uma jornada de retorno às minhas raízes familiares. Nesse processo, herdo memórias, histórias e saberes — muitos deles enterrados nas entrelinhas documentais de um passado escravagista, outros guardados nas lembranças dos mais velhos da minha árvore.
Minha jornada me conduz a choques de retorno, onde tomo consciência de antepassados escravocratas, donos de terras e colonos, que entrelaçaram nos descendentes o amargo do direito à vida erguido sobre o sofrimento e a liberdade de outros. E, de outro lado, descubro diversos antepassados escravizados, ex-escravizados, alforriados, negros, mestiços, castigados e marcados, que sobreviveram à crueldade da mais sombria bestialidade humana.
A Rama dos 4 Caminhos é a fusão daquilo que é lembrado com aquilo que foi esquecido, apagado, escondido e roubado. Essa perspectiva da história não lembrada é representada pelas matriarcas da minha árvore: mulheres que tiveram seus sobrenomes apagados dos registros, seus direitos negados, muitas vezes arrancadas de suas famílias, negociadas, abusadas e assassinadas.
Durante esse choque de retorno, meus antepassados e ancestrais ecoaram suas vozes em sonhos, oráculos, intuições e memórias, guiando-me pelas sombras do esquecimento e revelando a ancestralidade nas profundezas da terra, onde somente as raízes alcançam. Esses antepassados e ancestrais me concederam a responsabilidade de herdar saberes mágicos, de encantamento, abrindo as fendas entre o visível e o invisível.
É através desses saberes e experiências, unindo minha incansável busca pelo conhecimento a uma perspectiva hermenêutica, que busquei nos mais velhos da família fundamentos de culto aos antepassados que pudessem sustentar a criação da Rama dos 4 Caminhos. Essa jornada de choques também tem seu momento mágico, quando o retorno à memória e à iniciação me leva a uma das cidades onde muitos antepassados estão enterrados — e é nessa terra que me é passada a primeira outorga de culto aos ancestrais.
A tradição da Rama dos 4 Caminhos torna-se um legado no momento em que recebo das mãos de Antônio Gilberto Ferreira, aos 75 anos, a mão de faca dentro da tradição da Quimbanda Gaúcha. Ele, por sua vez, recebeu sua mão de faca da saudosa in memorian Mãe Zilá de Xapanã, que em vida deixou um legado de mais de 52 anos de tradições de culto aos ancestrais. E Mãe Zilá, por sua vez, herdou tradições do saudoso in memorian Orlando de Xapanã. É por meio dessa linhagem que os primeiros ancestrais da Rama dos 4 Caminhos recebem seus assentamentos, fundamentando as bases das raízes da nossa tradição.
Na Quimbanda Tradicional Gaúcha, é assentado um casal de Exu e Pombagira, cada qual com sua faca de corte consagrada pelas mãos de um sacerdote da Quimbanda. É importante observar e registrar que essa faca, ritualística e teologicamente, passa a alimentar o assentamento de Exu e Pombagira, estreitando e mantendo o vínculo do quimbandeiro com seus ancestrais assentados.
A passagem da mão de faca para as minhas mãos vem das facas que alimentam Zé Pelintra e Maria Padilha, Exu e Pombagira tutelares de Antônio Gilberto Ferreira. Isso é muito simbólico, uma vez que meus titulares são uma Maria Mulambo e um Zé Pelintra. A força das Marias sendo transmitida como legado é algo de imenso valor para mim, assim como a força de Seu Zé, que, como todo bom malandro, ressignifica-se como herança espiritual.
Dois ancestrais fundam a nossa rama: minha tutelar, a Senhora Maria Mulambo Anciã, que traz em sua força a sabedoria do tempo, o poder de mediar saberes entre tradições e a experiência que rompe fronteiras culturais. É na sua força que as sombras dos meus antepassados são trazidas à luz da sabedoria. Ela é a matriarca da rama e a ela o primeiro culto é dedicado. O segundo ancestral a compor a fundação é o Seu Zé Pelintra, que se apresenta em duas facetas na minha vida: cruzando os limites da lira e abrindo as fendas entre o terno e as encantarias. Seu Zé Pelintra é muito mais que um malandro: ele é a potencialidade de crescimento da rama, a resiliência da raiz que contorna pedras e encontra água.
Muitos ancestrais estão presentes na rama e, em breve, terão suas raízes assentadas, compondo as bases que sustentam nosso tronco — que, por sua vez, sustenta nossos frutos. Não há culto ancestral sem memória. E aqui, a memória é poder.
Aqui, as sementes falam.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
