Os sonhos e a dimensão onírica na Quimbanda
Sonhei que estava indo visitar um ritual. Eu havia sido convidado e, como estava viajando para um país diferente, aproveitei para conhecer as práticas religiosas locais. Alguém que me acompanhava conseguiu, de alguma forma, que participássemos do ritual.
O templo onde o ritual acontecia lembrava muito uma igreja antiga, com um teto extremamente alto, no limite da cobertura. Era construído de pedras e possuía um espaço interno amplo. No nível do altar, havia uma grande área aberta. À frente dessa área, estava sentada uma sacerdotisa de aparência idosa, com cerca de 50 a 60 anos. Ela vestia um vestido preto de estilo antigo, com lapelas roxo-escuras.
Eu me sentei em um banco próximo ao altar, ao lado de diversos sacerdotes. Todos usavam vestimentas rituais diferentes, que lembravam trajes de religiões de matriz africana. Cada um segurava uma bengala, e eu também tinha a minha: parecia um galho seco de árvore, com uma pedra oval preta e fosca no apoio da mão.
A sacerdotisa então incorporou uma entidade. Era Maria Mulambo, mas com uma aparência muito idosa, uma verdadeira anciã. No sonho, ela era uma loa. Instintivamente, comecei a bater minha bengala no chão em reverência a ela.
Maria Mulambo veio até mim bem devagar e chamou um cambono, um rapaz que a auxiliava no ritual. Ela disse a ele que depois falaria comigo. O cambono hesitou, questionando se era realmente a mim que ela se referia. Com firmeza, ela confirmou: sim, era comigo.
Os sonhos são canais de memória ancestral, além de uma dimensão em que a comunicação com os ancestrais pode ser ampliada, tornando possível acessar o numinoso por meio dos símbolos e arquétipos que emergem do inconsciente. Hoje, quando ouvimos falar de arquétipos, muitas vezes ficamos desconfiados dos temas que utilizam esse conceito para explicar determinados fenômenos — e eu concordo! Arquétipo é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para elucidar estruturas ancestrais herdadas pela psique, que permanecem “adormecidas” ou ativas em nosso inconsciente. Essas estruturas carregam a experiência da nossa relação com o universo, com a natureza e com as principais vivências existenciais humanas, como a vida, a morte, o sofrimento, entre outras.
Jung interpretou que os deuses seriam estruturas arquetípicas, que, por sua vez, se manifestam em múltiplas imagens arquetípicas. Essas imagens seriam símbolos, ou conjuntos de símbolos. É por isso que os rituais causam grande impacto em nosso ser (físico, psíquico e emocional) quando realizados de forma adequada: eles “despertam” essas estruturas que constelam diversos conteúdos relacionados, permitindo-nos assimilar experiências profundas. Os sonhos podem produzir o mesmo efeito.
Acredito que nossos ancestrais possuem a habilidade de estabelecer contato por meio dessa dimensão onírica. Mas por que, afinal, pelos sonhos e não por palavras em uma conversa direta? Porque, nos sonhos, a linguagem é simbólica, o que nos obriga a acessar camadas mais profundas de entendimento, assimilando continuamente novos conteúdos. Símbolos e arquétipos são fontes inesgotáveis de significados. Existem mensagens que precisam gerar saberes capazes de perdurar no tempo, e os sonhos são meios eficazes para isso.
Tomemos como exemplo o reino dos cemitérios. De imediato, podemos reconhecer símbolos como caixões, ossos, caveiras, cruzes, túmulos, catacumbas, cruzeiros das almas, entre outros. Se analisarmos a caveira, podemos dizer, de forma imediata, que ela simboliza a morte — e isso está correto, especialmente dentro de um cemitério. Mas a caveira também representa a morada do saber, pois nela “habita” a psique, o cérebro, a razão. Além disso, como parte do esqueleto, simboliza aquilo que permanece após a morte. Assim, podemos ir mais fundo e compreender a caveira como o saber que sobrevive além da morte. Percebem como um único elemento simbólico pode conter múltiplos significados? A mensagem, portanto, pode adquirir novas interpretações ao longo do tempo, conforme ampliamos nosso repertório simbólico. É por isso que os ancestrais atuam de forma simbólica, e as transformações ocorrem aos poucos: a experiência e a vivência expandem nossa capacidade de constelar novos conteúdos em nosso ser, possibilitando grandes transformações.
Costumo dizer que os sonhos são ferramentas muito mais poderosas para um quimbandeiro do que para um umbandista. Isso porque, em geral, os sonhos trazem à tona elementos reprimidos, memórias dolorosas, memórias ancestrais e conteúdos muitas vezes viscerais — um escopo que se encaixa mais intensamente na atmosfera da Quimbanda, especialmente pela força de Exu e Pombagira, que atuam em reinos e regiões espirituais onde habitam as sombras da alma. Como o contato com essas estruturas arquetípicas tende a ser profundamente catártico, é necessária uma estrutura ritual que organize e integre os conteúdos constelados, de forma que possam se tornar transformadores na consciência do iniciado.
Sonhos também podem ser iniciáticos na quimbanda
Sonhei que havia feito um vulto, uma boneca totalmente preta, esculpida em madeira. Ela tinha um formato gordinho e simples, com um vestido preto que também fazia parte da madeira.
Disse a alguém que estava comigo que precisava cortar três galinhas para ela. A pessoa insistiu que não era necessário, mas eu reafirmei que era. Então, cortei as três galinhas e derramei todo o sangue sobre a imagem, banhando-a completamente. A madeira absorveu o sangue, ficando com um brilho espesso, como se tivesse sido coberta por uma tinta preta e viscosa.
Foi nesse momento que a entidade na imagem falou: “Viu? Era isso que eu precisava para falar.” Ouvi sua voz claramente, como se fosse uma pessoa falando. Apenas a boca da boneca vibrou ao pronunciar as palavras.
Virei para a pessoa que estava comigo e disse: “Viu? Eu disse que ela precisava disso para falar.”
Esse sonho ocorreu cerca de um mês e meio após o anterior e serve muito bem para ilustrar que, além de trabalharem conteúdos profundos da psique, os sonhos também podem ser iniciáticos. Podemos perceber que, além de iniciáticos, eles podem ser orientadores em relação ao processo de iniciação. No primeiro sonho, a paciência e o tempo aparecem como fatores de preparação; já no segundo, a orientação é clara quanto ao necessário para estabelecer a atuação física do assentamento da minha tutelar, Maria Mulambo Anciã. A carga emocional proporcionada por esses sonhos foi intensa e numinosa, algo que talvez uma simples conversa oracular não alcançasse. Essa experiência foi profundamente transformadora, confirmando a presença de uma força ancestral intensa atuando no meu processo iniciático.
Podemos dizer que os sonhos iniciáticos oferecem certezas quanto aos passos dados pelo iniciado, além de abrirem portas para saberes ancestrais. Em outro sonho, por exemplo, pude observar como determinados elementos oraculares dos bantus eram confeccionados em tempos remotos — uma visão que hoje me auxilia no processo de criação do meu próprio oráculo.
Em muitas culturas, os sonhos são compreendidos como oraculares, e sempre que possível os sacerdotes recorrem aos relatos das experiências oníricas para interpretar acontecimentos, prever o futuro da comunidade, receber orientações dos deuses ou acessar saberes de cura para doenças. Por isso, devemos sempre tratar os sonhos como uma bússola, seja para aspectos emocionais, psíquicos, físicos ou espirituais. Se nossos ancestrais, Exus e Pombagiras utilizam a linguagem simbólica dos sonhos como meio de comunicação, tenha certeza: a mensagem é profunda, transformadora e carregada de potência.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
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Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
