Aspectos teológicos e psicológicos dos rituais na quimbanda gaúcha
Um ritual na Quimbanda segue uma estrutura de procedimentos que culmina em uma experiência com o sagrado, promovendo transformações profundas no inconsciente e reverberando emocional e psicologicamente no iniciado.
Simbologia e psicologia do ritual na quimbanda gaúcha
Ao longo do meu processo de pesquisa sobre a Quimbanda gaúcha e outras tradições, uni uma perspectiva hermenêutica aos estudos, o que me possibilitou formular algumas observações que considero de extrema importância no processo ritual de culto a Exus e Pombagiras dentro da Quimbanda.
Todo ritual movimenta forças e energias que reverberam de forma emocional, catártica e integradora, culminando na transformação esperada. Sob a ótica da psicologia da religião, essas forças se relacionam com estruturas arquetípicas presentes nas profundezas do inconsciente, as quais são acessadas de maneira consciente pelo sacerdote e pelo iniciado por meio dos rituais. Esses, por sua vez, são compostos por diversos elementos simbólicos que funcionam como canais de acesso a tais estruturas, forças e energias — muitas vezes associadas a atributos das divindades cultuadas ou dos espíritos ancestrais evocados.
De forma geral, o ritual é o meio de acessar e mover essas forças e energias em direção aos aspectos da vida que buscamos aprimorar. Exu e Pombagira são agentes dentro desse contexto, canalizando, redirecionando, organizando e reorganizando essas forças e energias em nossa existência. A terra, uma caveira, uma semente — elementos que, em conjunto, podem, por exemplo, evocar forças ancestrais, dependendo da forma como são organizados e ativados no ritual. Da mesma maneira, um tridente de Exu e Pombagira cravado na terra evoca a força ancestral dessas entidades. Em Exu e Pombagira há uma potência de romper fronteiras: Exu é o senhor dos caminhos entre os humanos e as divindades, o canal por onde todas as forças transitam. Podemos dizer, portanto, que sua energia faz emergir do inconsciente as potências associadas a todas as divindades. Além disso, Exu é o senhor do espaço liminar — a zona de manifestação das forças ancestrais, primordiais e divinas. Quando dizemos “Sem Exu não se faz nada”, é precisamente a esse potencial de manifestação, realização e comunicação que estamos nos referindo.
ALERTA!
Vale um alerta importante! Manipular elementos simbólicos sem a força de Exu e Pombagira dentro da Quimbanda pode ser extremamente arriscado. Nossos ancestrais tutelares possuem as ferramentas necessárias para conduzir e equilibrar as energias movimentadas; sem a atuação deles, corre-se o risco de sucumbir a forças que não se é capaz de suportar. O quimbandeiro pode facilmente cair nas armadilhas da vaidade e da prepotência. No âmbito psicológico, há o risco de vivenciar estados de dissociação, ficando “fora de si”, e, sem a presença de um sacerdote e de uma estrutura adequada para auxiliar o retorno à consciência, a pessoa pode se tornar vulnerável a ataques espirituais.
No plano físico, é comum observar comportamentos de exagero se manifestando, e há inclusive registros de mortes causadas por explosões de pólvora ou líquidos inflamáveis, além de casos de pessoas que contraíram infecções graves ao manipular terras de cemitérios sem os devidos cuidados.
Por isso, na Rama dos 4 Caminhos, a hermenêutica é uma regra fundamental. O iniciado deve mergulhar em estudos que lhe proporcionem uma compreensão profunda do próprio processo iniciático, garantindo segurança além do conhecimento adquirido. Um exemplo prático é a manipulação de ervas, que exige extrema cautela, pois muitas delas são tóxicas e perigosas, podendo causar alergias severas e até mesmo levar à morte. A regra é clara dentro da nossa Rama: “Nada sei, por isso sempre buscarei… mais conhecimento, mais sabedoria, mais saúde, mais prosperidade e mais discernimento.”
Teologia do ritual na quimbanda gaúcha
Vamos identificar na Quimbanda gaúcha diversos entrelaçamentos entre tradições, o que confere a ela uma cosmologia vasta e, ao mesmo tempo, de difícil sistematização. Em sua gênese, a Quimbanda gaúcha passa por um processo de transição a partir da tradição da Umbanda, na qual Exus e Pombagiras, até então, respondiam hierarquicamente a Caboclos e Pretos-Velhos. Sob a tutela de Bará e de outros orixás ou voduns da rua, como Ogum Avagã, Oyá Timboá e Oyá Dirã, essas entidades passam a atuar diretamente nos trabalhos espirituais de defesa e demanda das terreiras. Assim, podemos perceber que Exu e Pombagira ampliam seus territórios de ação e assumem o papel de mediadores entre tradições, ancestrais e divindades, como se recebessem as chaves das porteiras que separam — e ao mesmo tempo conectam — as fronteiras sagradas.
Encontramos diversos pontos de Quimbanda que expressam essas trocas e aproximações, inclusive entre Bará e os Exus da Quimbanda. Vejamos alguns exemplos:
Se é Bará eu não
Se é Exú também não
Eu só sei que ele venho de lá
Para trazer a proteção
Bará da rua, Bará exú
Bara da rua, Saravá Destranca rua
No meu castelo tem 7 guri
7 guri que trabalha pra Bará
7 guri que trabalha pra Exú
O sino da igrejinha faz belém-blém-blom
Deu meia-noite, o galo já cantou
Seu Tranca-Rua que é dono da gira
Oi, corre, gira, que Ogum mandou
Seu Omulu aê
Seu Omulu aá
Atotô das almas
Seu Omulu aê
Salve, salve, salve a kalunga
A relação com a Kalunga também merece destaque especial, pois revela um importante entrelaçamento com a cosmologia bantu bakongo. Nessa tradição, Kalunga representa a linha divisória entre Nseke e Npemba — o limite que separa o visível do invisível, a vida da morte, o dia da noite. É a fronteira simbólica onde as energias transitam entre os mundos, marcando o ponto de passagem e transformação das forças espirituais. Ao nos aprofundarmos no cosmograma da Dikenga, encontramos uma vasta rede de significados teológicos, cosmológicos e filosóficos, que ampliam a compreensão sobre o espaço em que Exu e Pombagira se movem. Assim, percebemos que a força dessas entidades não atua apenas entre planos espirituais distintos, mas também entre estados de consciência, equilibrando o trânsito entre o nascimento e a morte, o mundo material e o espiritual, a ordem e o caos criativo.
A figueira, o maior e mais potente axis mundi da quimbanda gaúcha
A figueira, em muitas tradições afro-brasileiras, é reconhecida como uma morada divina onde habitam orixás, voduns, eguns e também linhas de Exus e Pombagiras, como Pombagira Figueira e Exu Figueira, entidades que se manifestam através de sua força enraizada e sua copa majestosa. Diversas correntes associam ainda a figueira a Exu Caveira, espírito guardião das encruzilhadas entre o mundo dos vivos e o dos mortos. No Batuque, sua copa é considerada morada de Oyá Timboá e Oyá Dirã, senhoras dos ventos e dos eguns, divindades de rua que controlam os movimentos entre os planos e zelam pelas passagens espirituais. Assim, a figueira se apresenta não apenas como árvore sagrada, mas como um verdadeiro templo natural, onde o sagrado e o ancestral se entrelaçam, abrigando forças de transformação, comunicação e mistério.
Dentro da Rama dos 4 Caminhos, a figueira ocupa um papel fundamental como símbolo do poder feminino ancestral, pilar central de uma tradição que busca resgatar a importância do princípio materno, sedutor, criador e nutridor da vida. Na rama reconhecemos que, historicamente, o feminino foi distorcido e subjugado por estruturas patriarcais que associaram o poder da mulher ao mal, corrompendo sua verdadeira natureza divina. Contudo, nas tradições de culto aos ancestrais, o feminino é a potência vital, a raiz geradora que sustenta o equilíbrio entre os mundos. As figueiras, com seus troncos robustos e raízes profundas, simbolizam esse poder que gesta, transforma e dá vida. Sob sua sombra, a Rama dos 4 Caminhos reafirma o lugar da mulher como força de origem e continuidade, reconhecendo que é pelo ventre da terra e da mãe ancestral que crescem as raízes da sabedoria espiritual e dos mistérios da criação.
Muitos sacerdotes de Quimbanda, Umbanda e Batuque afirmam que figueiras espalhadas pelo território gaúcho guardam sob suas raízes feitiços, objetos sagrados e pertences de antigos negros feiticeiros, especialmente Pretos-Velhos, cujas práticas, por vezes, envolviam tanto curas quanto encantamentos de poder ambíguo. Esses relatos reforçam a crença de que a figueira é uma morada de Exus e Eguns, espíritos que, por meio dela, permanecem próximos do mundo material. Suas cavidades internas, por vezes ocadas e com buracos que se abrem ao solo, são vistas como portais naturais — moradas de serpentes e outros animais ligados a Ogum Avagã, reforçando o caráter guerreiro e guardião dessa árvore. Assim, a figueira se revela como um verdadeiro axis mundi, um ponto de intersecção entre os vivos e os ancestrais, entre o visível e o invisível. Nela, Exus e Pombagiras transitam entre o desejo, a ação e a realização, movimentando energias que fertilizam tanto o espírito quanto a matéria. Ao mesmo tempo, sua natureza feminina manifesta-se como ventre de gestação e força protetora, recordando que toda mãe, seja humana ou divina, é feroz na defesa de sua criação e generosa ao nutrir a vida que brota sob seus galhos.
O ritual da quimbanda como despertar das potências inconscientes
Durante minha jornada espiritual iniciática, pude compreender com maior clareza as nuances do processo de incorporação das forças de Exu e Pombagira, percebendo o quanto essas potências, antes de se tornarem plenas em nosso transe, funcionam como espelhos que refletem as profundezas do nosso inconsciente. E é justamente aqui que surge um ponto delicado, porém necessário, de ser abordado: o transe anímico, ou animismo. Um médium verdadeiramente iniciado e maduro é aquele que já esgotou as sombras anímicas que carregava — conteúdos reprimidos que frequentemente se manifestam como desejos de poder, egocentrismo e vaidade. A primeira etapa do despertar espiritual consiste em encarar, com coragem, as próprias profundezas e sombras, pois nelas se ocultam aspectos essenciais de nós mesmos. Durante o processo anímico do transe, vamos dando vazão a esses conteúdos reprimidos, reintegrando-os à consciência e tornando-nos mais plenos de espírito. É a partir desse estado de reintegração que se abre a verdadeira perspectiva mediúnica: se sabemos quem somos, sabemos quando não o somos. Nesse ponto, Exu e Pombagira se manifestam em sua plenitude, pois, despertos para nossa própria essência, somos capazes de perceber, experimentar e sustentar a presença dessas forças. É nesse momento que as potências inconscientes despertam, e conseguimos acessar energias que exigem a totalidade de nossos sentidos — físicos e espirituais — para que possam atuar conscientemente em nossas vidas.
Ao observarmos com atenção, percebemos que muitos dos elementos rituais associados a Exu e Pombagira têm como propósito simbólico abrir as portas do inconsciente. A chave, por exemplo, representa o instrumento de acesso a essas dimensões internas, enquanto o tridente, fincado no solo, expressa a força de Exu agindo nas profundezas da alma humana. O fogo, frequentemente presente nos rituais de abertura, também carrega um papel essencial: ele consome, purifica e transforma, sublimando o que antes era impuro. O fogo de Exu pode ser sentença — pois queima e destrói o que não serve —, mas também é alquimia, já que transforma o que é bruto em alimento para o espírito.
Ter consciência desses e de outros elementos simbólicos dentro do ritual nos permite deslocar a atenção para o seu aspecto organizador, compreendendo que cada gesto, objeto e ação ritualística não é apenas uma formalidade ou tradição, mas uma linguagem simbólica que atua sobre a psique e o espírito. Assim, o rito deixa de ser uma simples sequência de movimentos e passa a se tornar uma experiência profunda de autoconhecimento, reintegração e expansão da consciência — um espaço onde Exu e Pombagira revelam, por meio do símbolo e da emoção, os caminhos que ligam o humano ao divino.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
Participe, é totalmente gratuito
Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
