Quanto custa uma iniciação na Quimbanda? Uma crítica social

Antigamente era diferente

Quando escutamos “antigamente”, nos vemos em uma zona de conflito entre tradições, entre antigos e novos sacerdotes, mas, acima de tudo, em um conflito entre a história feita e a história em construção — e, no meio disso tudo, a preservação da ancestralidade em suas diversas perspectivas: cultural, genealógica e religiosa. Há uma disputa por protagonismo, autoridade, visibilidade e reconhecimento.

Escutei de um babalorixá do Batuque gaúcho que, em seu processo de iniciação — que levou sete anos —, um dos ritos exigia o sacrifício de um peixe vivo sobre um otá. Hoje, essa mesma mãe de santo utiliza o sumo de ervas no lugar do sacrifício. Segundo o relato, isso ocorre porque, na época, era possível conseguir peixes vivos por intermédio de pescadores na beira do Guaíba; hoje, isso se tornou inviável, para não dizer impossível. Dentro desse contexto, até podemos compreender a modificação de um ritual tão importante, mas a preservação do fundamento deve ser passada adiante como prioridade, e não como alternativa. Algo que esse mesmo babalorixá diz não ver acontecendo em diversos ritos e comunidades batuqueiras — e o mesmo se observa dentro da Quimbanda tradicional gaúcha.

Na minha busca pela iniciação na Quimbanda, tive a fundamentação dos assentamentos dos meus tutelares — a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra — feitos da forma como os assentamentos de Exu e Pombagira eram estruturados há mais de cinquenta anos. Isso me permitiu perceber a desproporção dos assentamentos feitos hoje dentro do que se chama de Quimbanda tradicional gaúcha. Muitos dizem que a quantidade de itens fortalece o assentamento. Eu não posso afirmar que sim nem que não, mas o que tenho aprendido pela experiência de cultuar Exu e Pombagira é que o que define um assentamento como morada de poder de um ancestral é se ele responde. O assentamento pode conter ouro e diamantes, mas, se não responde, ali não é a morada de um ancestral — seja Exu, Pombagira, caboclo ou preto-velho.

Essa resposta pode se manifestar de diversas formas: por sonhos, realizações materiais, visagens, sons — enfim, pela presença palpável dos ancestrais. Um assentamento simples, mas fundamentado, estabelece um canal efetivo entre o iniciado e o ancestral, tornando-se uma verdadeira morada de poder, especialmente quando o iniciado mantém o culto vivo. E é aqui que identificamos um pilar essencial: é na simplicidade que reside a garantia da fé verdadeira. O que alimenta o elo entre o iniciado e o ancestral não é o luxo do assentamento, mas a regularidade do culto, a manutenção ritualística simples, porém resignada.

Hoje não vemos fundamentos adaptados, mas fundamentos reinventados

Não vemos mais fundamentos adaptados; vemos novos fundamentos criados. E não tenho a pretensão de julgar se esses novos fundamentos são verdadeiros ou eficazes. Eu mesmo defendo a criação de ritos, interpretações de mitos e novos processos iniciáticos, mas também defendo a preservação da tradição, que deve ser a prioridade e o coração pulsante do culto.

Na Rama dos 4 Caminhos, buscamos uma relação mais direta com o Reino das Matas, o que nos leva a assimilar diversos conhecimentos ritualísticos, validados junto aos ancestrais e testados em sua efetividade pela comunidade. Mas, no centro disso tudo, pulsa o coração dos assentamentos fundamentados dentro da tradicional Quimbanda gaúcha.

Meu feitor na Quimbanda, meu primo de segundo grau, Antônio Gilberto Ferreira, um senhor de 75 anos, costuma dizer:

“Antigamente, a orientação era cortar para o Exu e a Pombagira tutelares uma vez por ano. Hoje, um iniciado parece mais um sócio de um matadouro.”

A relação com Exu e Pombagira é mantida quase exclusivamente pelo sangue, enquanto padês, comidas e bebidas simples são descreditadas como oferendas aceitas pelos ancestrais. Quando algo é demais, perde o valor; o excesso se torna soberba, arrogância e, por fim, prepotência — uma armadilha perigosa para qualquer quimbandeiro.

Quando o disponível era a fenda para o invisível

Durante minha pesquisa, identifiquei que os elementos centrais nas fundamentações de ancestrais Exus e Pombagiras eram de acesso simples e, muitas vezes, sem custo para os iniciados. O uso de sementes, terras, ossos, pedras, água, ervas e o sacrifício de um galo, galinha ou até mesmo um pombo eram os principais elementos utilizados.

As próprias guias eram feitas com esses materiais naturais. Talvez os elementos de metal fossem os únicos que exigiam algum custo, pois eram difíceis de conseguir e caros — além de um ferreiro ser inacessível às camadas mais pobres. Diante disso, é inconcebível imaginar colocar ouro, prata e pedras preciosas em um assentamento. Não que o ancestral não mereça, mas isso não condiz com a realidade das classes populares — nem hoje, nem nas épocas fundantes do culto aos ancestrais brasileiros.

A abolição da escravidão foi em 1888 — não é tão distante assim. Era um esforço sem precedentes um escravizado comprar sua alforria, para não dizer um milagre. Imaginar hoje uma política religiosa baseada em exageros contraria as bases fundantes do culto aos ancestrais e à natureza como via de acesso. Não à toa, chamamos de raízes ancestrais.

Onde há exagero, falta simplicidade; onde falta simplicidade, falta essência.

Quando o sal do suor era o pagamento de maior valor

Hoje, não é o suor que define um iniciado, mas a aquisição. Criaram-se sistemas e processos que parecem uma escada comprada para o paraíso. E a história já nos mostrou: bolsos pesados caem. A ganância, a vaidade e o egoísmo moldam um caminho solitário rumo ao abismo.

Isso não é uma moral cristã ou kardecista — as bases das tradições afro-indígenas se firmam na coesão comunitária, na integração com a natureza e no princípio de não prejudicar a jornada evolutiva de outro espírito.

Muitos, porém, justificam práticas bélicas e capitalistas sob o argumento de que as tradições ibéricas também influenciaram as macumbas, como a Quimbanda e a Umbanda. Mas isso é mentalidade colonizadora — e é preciso estar muito cego para não perceber.

Se assumíssemos os pilares ético-filosóficos das tradições afro-indígenas dentro da Quimbanda, veríamos ruir quase tudo o que hoje se apresenta como “popular” no meio macumbeiro. Usamos o saber ancestral para magias e feitiços, mas raramente aplicamos as motivações, comportamentos e ações sob a ótica ética afro-indígena. Se o fizéssemos, estaríamos em dívida.

Onde os deuses morrem

Quando o culto a um deus se torna impossível para um devoto, nasce uma cova divina.
Se a iniciação estabelece uma fronteira social de acesso ao divino, então há ali uma barreira intransponível entre humanos e deuses.

Quando os deuses — outrora forças primordiais que desciam à Terra para receber grãos em agradecimento — só descem hoje por meio do buraco que o dinheiro deixa no bolso do devoto, esse deus se tornou seletivo e caro demais para quem clama por prosperidade e fertilidade.

A lógica é clara: pedimos prosperidade porque nada temos; pedimos fertilidade porque nada cresce; pedimos paz porque estamos em guerra.
Hoje, quem pede prosperidade já é próspero; quem pede fertilidade já realiza; quem pede paz é quem cria a guerra.

Será que são os mesmos deuses respondendo?

Acredito que a ressignificação dos mitos e deuses é necessária, pois acreditar que a Terra é plana e que cairemos ao chegar ao limite da abóbada não faz mais sentido.
Mas existe algo essencial nessa relação que deve permanecer: a busca existencial universal, a tendência inata do ser humano a procurar sentido, pertencimento e transcendência.

As guerras podem mudar, mas a busca pela paz permanece. Quando um deus perde os atributos que davam sentido à condição humana, esse deus morre — porque é a devoção e sua relação com a condição que alimentam o elo entre o deus e o devoto.

Chamar um deus cujo atributo central é a justiça, mas que age de forma seletiva, é evocar uma balança em desequilíbrio.
Atrelar uma iniciação a uma divindade cujo núcleo é a justiça e negar o acesso ao devoto por condição financeira contradiz a própria essência do sagrado.

Não nego que existam custos, mas o fio que separa o valor do preço é tênue e afiado.
A relação de troca garante a circularidade da realização entre sacerdote, iniciado, comunidade e ancestral.
Mas, quando um dos elos sofre, algo precisa ser ajustado, equilibrado e corrigido.
O ancestral que fala deve ser ouvido — e, se fala, a semente deve germinar.

Um sacerdote não deve jamais manter uma semente ancestral seca.

Resistir à imposição colonizadora também é um ato de fé

A política do “somente quem tem, pode” é herança de uma cultura capitalista e colonizadora, na qual o direito ao culto era exclusivo dos senhores fazendeiros e escravocratas.
Hoje, vemos política semelhante em muitas macumbas — mas também há resistência: pessoas e casas que lutam para manter aberto o canal entre os deuses e aqueles que realmente necessitam de sua presença.

Cada um sabe da própria dor, mas certas dores são privilégios.
Sofrer de barriga cheia é um privilégio diante de quem sofre por fome.

Por isso, defendo que um sacerdote deve fomentar em sua comunidade ações de impacto social e ambiental, para que todos sintam a transformação do mundo que habitam.

Usufruir da ancestralidade apenas para si, sem gerar impacto coletivo, é reforçar a mentalidade colonizadora que extrai, consome e apaga as relações entre humanos e natureza.

Se o ancestral fala, a rama cresce

Na Rama dos 4 Caminhos, o acesso à tradição pela família é sem custos, exigindo apenas os materiais essenciais — com exceções necessárias em rituais específicos.
Eles são a continuidade da árvore ancestral, e é meu dever, como sacerdote da rama, zelar e preservar os laços da família e da ancestralidade.

Para quem não pertence à família, iniciar-se na Rama é possível — e a dinâmica de troca é uma só:

“Você dá somente aquilo que suas mãos alcançam.
E, se suas mãos não alcançam, ainda assim elas se cruzam em saudação aos ancestrais — e isso basta.”

Isso não significa que qualquer pessoa possa entrar na rama. Há um processo — e esse processo envolve fraternidade, coesão social, consciência socioambiental e desenvolvimento hermenêutico do saber. Ainda assim, os oráculos e os ancestrais tutelares podem ser conclusivos quanto à inclusão ou não na Rama.

Aqui, as sementes falam, as raízes crescem e os ancestrais dão frutos. 🌿

Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Participe, é totalmente gratuito

Núcleo de estudo e pesquisa ancestral

O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.

Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.

As raízes ancestrais estão profundamente entrelaçadas às memórias da alma. Nutrir a memória é cultuar os ancestrais.