Introdução: O mistério e a força da quimbanda no sul do Brasil

A Quimbanda, muitas vezes envolta em mistério e estereótipos, é uma das mais vibrantes e complexas manifestações da religiosidade afro-brasileira, especialmente no Rio Grande do Sul. Longe de ser apenas um apêndice ou uma “linha de trabalho” de outras religiões, ela se estabeleceu como um campo religioso autônomo, com fundamentos, rituais e uma teologia própria que refletem a rica história de cruzamentos e resistências da diáspora africana na região.

Porto Alegre, a capital gaúcha, é um epicentro fundamental para a compreensão da Quimbanda, onde ela floresceu em um contexto cultural único, o afro-gaúcho, em íntima relação com o Batuque e a Umbanda. Este artigo pilar se propõe a mergulhar profundamente na história, nos fundamentos e na realidade gaúcha da Quimbanda, desmistificando preconceitos e celebrando a força ancestral que move essa tradição.

Nosso objetivo é fornecer um guia completo e aprofundado, com uma densidade informativa que honre a complexidade do tema, servindo como a principal referência para a palavra-chave “quimbanda em porto alegre”.

1. O que é quimbanda? Definição, origens e distinções

Para entender a Quimbanda em Porto Alegre, é crucial estabelecer uma base conceitual sólida sobre o que ela representa no cenário religioso brasileiro.

1.1. A etimologia e o conceito: Kimbánda, magia e conhecimento ancestral

A palavra “Quimbanda” (ou Kimbanda) possui raízes bantas, remetendo ao termo kimbánda, que no quimbundo (língua falada em Angola) designa o curandeiro, o sacerdote, o especialista em rituais e feitiços. É, portanto, um termo que carrega a ideia de magia, cura e conhecimento ancestral.

No Brasil, o termo passou por um processo de ressignificação e, a partir do século XX, começou a ser usado para designar a religião que cultua as entidades conhecidas como Exus e Pombagiras. A própria grafia “Kimbanda” é considerada a mais próxima da origem banta e é frequentemente utilizada para designar as tradições que buscam resgatar essa raiz, como é o caso da Quimbanda Gaúcha.

1.2. As origens históricas e a matriz africana: A força da diáspora

A Quimbanda não surgiu do nada; ela é um resultado direto da criatividade e da resistência africana e afro-brasileira. Suas origens estão intrinsecamente ligadas aos cultos de ancestrais e aos saberes mágicos trazidos pelos povos bantos, iorubás e de outras etnias escravizadas.

  • Influência Banta: A matriz banta é inegável, tanto na etimologia do nome quanto na ênfase no culto aos ancestrais e na magia. A busca por essa raiz ancestral é um movimento de resgate da memória e da dignidade.
  • A Figura de Exu: A Quimbanda se estrutura em torno da figura do Exu, que, embora distinto do Orixá Exu do Candomblé e do Batuque, compartilha a função de mensageiro, guardião dos caminhos e senhor da encruzilhada. A Quimbanda lida com a força do Povo da Rua, que são os espíritos que atuam nos limites, nas zonas de transição entre o mundo dos vivos e dos mortos.
  • O “Lixo Simbólico” e a Autonomia: A Quimbanda, em seu processo de formação, incorporou elementos que eram rejeitados ou marginalizados por outras religiões, como o catolicismo e até mesmo a Umbanda em suas fases iniciais. O pesquisador Rodrigo Marques Leistner em sua tese Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas (2018), aponta para a Quimbanda como um universo religioso que assume como positivo e constitutivo de sua religiosidade “todos os resíduos rejeitados pelas demais confissões” [Leistner, 2018, p. 18]. Essa característica de incorporação do “lado sombrio” ou “marginal” é um traço de sua força e autonomia, polarizando-se com as concepções do sagrado típicas da tradição ocidental e com outras religiosidades.

1.3. Quimbanda vs. Umbanda: Entenda as diferenças e a complexidade

Uma das maiores confusões conceituais é a distinção entre Quimbanda e Umbanda. Embora ambas sejam religiões afro-brasileiras e compartilhem o culto a Exus e Pombagiras, seus fundamentos e práticas são distintos, especialmente no contexto gaúcho:

Característica

Quimbanda

Umbanda

Foco Principal

Culto a Exus, Pombagiras e Povo da Rua (ancestrais e espíritos de poder). Ênfase na magia, na transformação e na ação direta.

Culto a Orixás e a diversas linhas de trabalho (Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças, etc.). Ênfase na caridade, na evolução espiritual e na orientação moral.

Natureza da Força

Forças da esquerda, da rua, da noite, do cemitério. Lida com a dualidade e a complexidade da vida, atuando na matéria e na resolução de problemas práticos.

Forças da direita, da luz, do dia. Busca o equilíbrio e a harmonia, atuando mais na orientação e no conselho.

Rituais e Oferendas

Uso de bebidas alcoólicas, fumo, elementos de magia (pó, velas pretas/vermelhas). O sacrifício animal (corte) é um fundamento em muitas tradições, especialmente a gaúcha.

Uso de velas brancas, flores, frutas, água. O sacrifício animal é raro ou inexistente em muitas vertentes.

A Quimbanda se estabelece como uma religião que lida diretamente com as forças de transformação, com a dualidade e com a complexidade da vida humana, sem a necessidade de mascarar ou “branquear” seus fundamentos. Ela assume a sua posição de religião da “esquerda” com orgulho e poder.

2. A quimbanda no Rio Grande do Sul: A força da linha cruzada

O Rio Grande do Sul possui um cenário religioso afro-brasileiro com características singulares, e a Quimbanda gaúcha, ou Quimbanda Tradicional Gaúcha (também conhecida como Linha Cruzada), é um dos seus pilares. A formação dessa tradição é um testemunho da capacidade de sincretismo e adaptação das religiões de matriz africana.

2.1. O contexto afro-gaúcho e a fusão com o batuque

A Quimbanda Gaúcha se desenvolveu em um ambiente onde o Batuque (o Candomblé do Sul) era a religião de Orixá dominante. Diferentemente do eixo Rio-São Paulo, onde a Quimbanda se formou em um contexto mais influenciado pela Umbanda e pelas macumbas cariocas, no Rio Grande do Sul, a Quimbanda buscou nas fundamentações das tradições do Batuque a base para sua estruturação.

  • A Linha Cruzada: O termo “Linha Cruzada” é fundamental. Ele indica o cruzamento de fundamentos entre o Batuque (culto a Orixás) e o culto a Exus e Pombagiras, dando origem a uma nova estrutura religiosa independente.
  • A Centralidade de Bará: O Orixá Bará (Exu no Batuque) é central nesse processo. O Batuque já possuía o culto a Bará Lodê (Bará da Rua), e casas tradicionais de Quimbanda gaúcha buscaram elementos do culto a Bará como base para a estruturação de assentamentos e oferendas a Exus e Pombagiras. Segundo a análise da Rama dos 4 Caminhos, é possível deduzir que foi dos axés de Bará que as facas comeram sangue pela primeira vez na Quimbanda gaúcha, sendo Bará o senhor fundador da Linha Cruzada, aquele que detém o poder dos caminhos e que confere a chancela espiritual para essa nova forma de culto.
  • O Corte como Fundamento: O ato sacrificial, o corte, é um elemento que a Quimbanda Gaúcha herdou do Batuque e que se tornou um fundamento essencial para a alimentação e a vitalidade dos assentamentos de Exus e Pombagiras. O corte sacrificial não é um fim em si, mas um “ato mágico de dar vida à realização de potenciais. Na jornada profunda da ancestralidade, o sangue é transmissão, e devemos honrá-lo em cada ato sacrificial”.

2.2. Porto Alegre: O palco da consolidação

Porto Alegre e sua região metropolitana foram o palco para a consolidação da Quimbanda Tradicional Gaúcha, um campo de estudo e prática que reflete a interconexão entre as tradições africanas, a cultura gaúcha e a resistência contra o preconceito.

  • Lideranças Históricas: A formação da Linha Cruzada envolveu lideranças importantes. Rodrigo Marques Leistner cita sacerdotes como Pai Eliseu do Ogum e Pai Vinícius de Oxalá como figuras que participaram ativamente desse processo de formatação [Leistner, 2018].
  • O Legado de Mãe Ieda: A dissertação de Suzilene David da Silva, A Quimbanda de Mãe Ieda: religião “afro-gaúcha” de “exus” e “pombas-giras” (2008), é um importante registro etnográfico que demonstra a força e a autonomia da Quimbanda na capital gaúcha. O trabalho foca na trajetória de uma sacerdotisa negra e rio-grandense, cuja religiosidade é frequentemente excluída da sociedade gaúcha, mas que encontra na Quimbanda um caminho para ser respeitada e alcançar poder [Silva, 2008, p. 8]. A história de Mãe Ieda, que desvendou algumas das relações entre as comunidades religiosa e carnavalesca de Porto Alegre, é um exemplo da importância da Quimbanda na esfera cultural e social da cidade.

 

A Quimbanda em Porto Alegre é, portanto, um campo de estudo e prática que reflete a interconexão entre as tradições africanas, a cultura gaúcha e a resistência contra o preconceito, um verdadeiro oceano profundo e vasto de saberes que se perde no horizonte.

3. Os fundamentos da quimbanda: Exus e pombagiras, os guardiões da transformação

O coração da Quimbanda reside no culto aos seus guardiões: Exus e Pombagiras. Eles são os agentes da transformação, os intermediários entre o visível e o invisível, e os executores da magia.

3.1. Exus e pombagiras: A dualidade e a força da esquerda

Na Quimbanda, Exus e Pombagiras são espíritos de poder, ancestrais divinizados ou entidades que alcançaram um alto grau de conhecimento e capacidade de atuação no plano material. Eles são os condutores da ação, os mestres do ato, aqueles que, pelo poder da raiz, do saber e da magia, tornam concreta toda potência entrelaçada em feitiçaria.

  • Exu: É o princípio masculino da força, o senhor dos caminhos, da ordem e da desordem. Sua atuação é direta, sem rodeios, e ele é o responsável por destrancar caminhos, proteger e executar a justiça. A força de Exu é a potencialidade de crescimento, a resiliência da raiz que contorna pedras e encontra água, como é o caso de Seu Zé Pelintra na Rama dos 4 Caminhos.
  • Pombagira: É o princípio feminino da força, a senhora da encruzilhada, da sedução, da paixão e da transformação. Ela representa a força feminina que foi historicamente marginalizada, mas que detém um poder imenso sobre as relações e os destinos. A Pombagira é a potência da vida, o materno, o sedutor, o transformador, o gerador da vida, e sua força ancestral é de extrema importância. A Senhora Maria Mulambo Anciã, por exemplo, traz em sua força a sabedoria do tempo, o poder de mediar saberes entre tradições e a experiência que rompe fronteiras culturais.

3.2. O assentamento e a transmissão do legado

Na Quimbanda Tradicional Gaúcha, o culto é profundamente ligado ao conceito de assentamento e à mão de faca, que simbolizam a fixação da força e a transmissão do legado ancestral.

  • Assentamento: É o local físico onde a força do Exu e da Pombagira é fixada e cultuada. É uma morada de poder que estabelece o vínculo entre o iniciado e o ancestral. Na Quimbanda Gaúcha, é assentado um casal de Exu e Pombagira, cada qual com sua faca de corte consagrada.
  • Mão de Faca: É a outorga ritualística que confere ao sacerdote (ou quimbandeiro) o poder de realizar o corte sacrificial para alimentar o assentamento. A faca, ritualística e teologicamente, passa a alimentar o assentamento de Exu e Pombagira, estreitando e mantendo o vínculo do quimbandeiro com seus ancestrais assentados. A passagem dessa outorga, como no caso da Rama dos 4 Caminhos, é um momento mágico que conecta o iniciado a uma linhagem de sacerdotes e a um legado de mais de 50 anos de tradição de culto aos ancestrais.

3.3. O povo da rua e a magia ancestral

Exus e Pombagiras são frequentemente chamados de Povo da Rua, pois atuam nas encruzilhadas, cemitérios, portões e outros espaços liminares (entre mundos).

  • O Feitiço e o Efeito: A Quimbanda é a religião da magia e do feitiço. O feitiço feito gera efeito, e é por esse meio que Exu e Pombagira atuam, tornando concreta a potência entrelaçada em feitiçaria. A magia, aqui, não é vista de forma pejorativa, mas como a capacidade de manipular as forças da natureza e do espírito para a realização de potenciais.

 

A Ancestralidade e a Cura: O culto na Quimbanda Gaúcha é um culto aos ancestrais e antepassados. O ancestral é aquele que se tornou divinizado, mas a tradição da Rama dos 4 Caminhos, por exemplo, permite acessar toda uma raiz de antepassados (divinizados ou não) para resolver negatividades ancestrais que reverberam na vida dos descendentes. “Na Rama dos 4 Caminhos, os ancestrais ecoam suas vozes, e os antepassados curam feridas. Aqui plantamos memória, para que ela floresça em culto”.

4. A realidade gaúcha: Tradições, rituais e símbolos únicos

A Quimbanda em Porto Alegre se manifesta em rituais e símbolos que a tornam inconfundível, refletindo a cultura e a história do Rio Grande do Sul.

4.1. A figueira: O axis mundi e a morada de poder

Um dos símbolos mais poderosos e distintivos da Quimbanda Gaúcha é a Figueira, que transcende a botânica e se torna um elemento central na cosmologia e na prática mágica. A figueira é considerada o principal axis mundi (eixo do mundo) da Quimbanda gaúcha, um conceito que a conecta a tradições milenares.

  • Morada Divina e Ponto de Força: A figueira é vista como uma morada divina, um ponto de força telúrica onde habitam divindades como Exu e Pombagira (Exu Figueira, Pombagira Figueira) e Eguns (espíritos de mortos). Dentro do Batuque, é dito que sua copa é morada de divindades como Oyá Timboá e Oyá Dirã, senhoras dos Eguns em suas respectivas nações. Essa associação reforça a figueira como um portal, um espaço onde o mundo dos vivos e dos mortos se encontram.
  • Liminaridade e Magia Ancestral: Ela é um espaço liminar, uma ponte entre o visível e o invisível, onde Exu e Pombagira podem realizar o trânsito entre desejo, ação e realização. A figueira é um ponto de concentração de magia ancestral. Muitos sacerdotes afirmam que, em figueiras do território gaúcho, estão enterrados feitiços, objetos sagrados e pertences de antigos feiticeiros, com destaque para feitiços de Pretos-Velhos. Essa crença ressalta o papel da figueira como guardiã de segredos e poderes antigos.
  • Força Feminina e Geração: A figueira é também uma estrutura de acesso a forças femininas primordiais, reforçando o poder gerador da mulher e a importância do feminino na tradição. As raízes ancestrais crescem pelo poder gerador da mulher, e a figueira guarda estruturas simbólicas que transformam, gestam e dão vida a diversas estruturas de poder e sabedoria dentro da tradição.

 

A importância da figueira na Quimbanda Gaúcha encontra eco em tradições globais, como o budismo (onde Sidarta Gautama atingiu a iluminação sob uma figueira) e o hinduísmo (onde a figueira-de-bengala simboliza a Trimurti), o que demonstra a universalidade do símbolo da árvore como axis mundi.

4.2. A musicalidade e os cânticos: O eco do batuque na quimbanda

Os pontos cantados da Quimbanda Gaúcha, muitas vezes, revelam a profunda conexão com o Batuque, a religião de Orixá do Sul. Essa fusão se manifesta em letras que entrelaçam as divindades.

  • A Fusão Teológica e a Tutela de Bará: Cânticos como “Bará da rua, Bará Exu, Bará da rua, saravá Destranca Rua” demonstram o entrelaçamento de Bará da Rua, ou Bará Lodê, com o campo de ação de Exu na Quimbanda. Há uma dedução coerente de que Bará pode ser visto como o senhor fundador da Linha Cruzada, conferindo a chancela espiritual para essa nova forma de culto. Isso sugere uma relação de tutela e poder, onde Orixás como Bará Lodê e Ogum Avagã podem, em determinados momentos, utilizar os Exus e Pombagiras para realizarem certos trabalhos em seu nome.

 

O clima de congregação: A musicalidade e a irreverência de Exu e Pombagira nas festas de Quimbanda em Porto Alegre criam um clima de confraternização e congregação, um verdadeiro momento social e religioso que atrai e encanta a comunidade.

4.3. Eventos e a visibilidade pública: A marcha dos quimbandeiros

A Quimbanda não se restringe aos espaços fechados dos terreiros. Em Porto Alegre, a comunidade se manifesta publicamente, sendo a Marcha dos Quimbandeiros um marco de visibilidade e resistência, demonstrando a relevância da religião na esfera pública e cultural da cidade.

  • Afirmação da Fé: A Marcha é um ato de afirmação da fé, trazendo a religião para a luz do dia e para o debate social, combatendo o preconceito e a intolerância. É um momento de união e celebração da identidade afro-gaúcha.
  • Importância Cultural: A presença da Quimbanda em eventos públicos, como a Marcha e a relação com o carnaval (como demonstrado no trabalho de Mãe Ieda), sublinha a sua importância cultural e social na capital gaúcha.

5. Desmistificando a quimbanda: Combate ao preconceito e intolerância religiosa

A Quimbanda é, talvez, a religião afro-brasileira mais estigmatizada. O preconceito, enraizado em uma visão eurocêntrica e cristã, a associa a práticas malignas, ao mal e à “magia negra”. O combate a esse estigma é parte integrante da realidade da Quimbanda em Porto Alegre.

5.1. O estigma e a marginalização da religião afro-gaúcha

O estigma social é uma realidade constante. A Quimbanda lida com o que é socialmente marginalizado (a rua, a noite, a sexualidade, a morte), e isso a torna um alvo fácil para a intolerância.

  • Exclusão Social e a Visão do “Outro”: A dissertação de Suzilene David da Silva destaca como a religiosidade afro-gaúcha, e a Quimbanda em particular, é frequentemente excluída da sociedade gaúcha, sendo considerada “a outra” [Silva, 2008]. Essa exclusão é um reflexo do racismo estrutural e da negação da herança africana no Sul do Brasil, onde a mulher negra e religiosa encontra na Quimbanda um caminho de poder e respeito, apesar da sociedade.
  • A Banalização e o Afastamento: O preconceito se manifesta também na banalização da religião, onde a Quimbanda é procurada apenas para “vinganças, forçando paixões e atacando quem quer que se colocasse em seu caminho”, o que pode levar ao afastamento de praticantes mais esotéricos e à deturpação dos fundamentos.

5.2. A ética da quimbanda: Responsabilidade e transformação

A Quimbanda não é uma religião do mal; ela é uma religião da ação, da transformação e da consequência. Ela lida com a dualidade da existência e com a capacidade humana de fazer o bem ou o mal.

  • O Ato Sacrificial: Entender que o corte sacrificial, por exemplo, não é um “canal de egos, vaidades ou orgulhos feridos, mas ato mágico de dar vida à realização de potenciais” é fundamental para desmistificar a prática. A faca, o corte e o sangue compõem um movimento, uma ação que reverbera no ser, despertando os agentes transformadores da realização.
  • Responsabilidade e Disciplina: A ética da Quimbanda reside na responsabilidade do quimbandeiro sobre seus atos e na disciplina para com seus fundamentos. O culto não se torna vivo por feitiços, mas pela disciplina; a grandiosidade não se estabelece pelo luxo, mas pela essência que encontra solo para se manifestar.

6. A jornada ancestral e o legado em Porto Alegre: A reconstrução da memória

A Quimbanda Gaúcha é um legado vivo, transmitido por linhagens familiares e religiosas. A história da Rama dos 4 Caminhos, por exemplo, ilustra a importância do resgate da genealogia ancestral e do retorno às origens como um ato de fundação e ressignificação.

6.1. A genealogia ancestral: Raízes, memória e cura

A Quimbanda, em sua essência, é um caminho para a reconexão com a ancestralidade, especialmente no contexto brasileiro, onde o apagamento histórico dos povos originários e dos escravizados impossibilitou a preservação da memória de muitos antepassados.

  • O Choque de Retorno e a Fusão de Memórias: O mergulho na memória ancestral pode gerar um “choque de retorno”, confrontando o descendente com a história familiar, incluindo os aspectos sombrios (como antepassados escravocratas) e os luminosos (como antepassados escravizados e alforriados). A Rama dos 4 Caminhos é a fusão daquilo que é lembrado com aquilo que foi esquecido, apagado, escondido e roubado.
  • O Apagamento Histórico: O processo de pesquisa genealógica revela a crueldade da cultura escravocrata, onde negros e indígenas escravizados perdiam seus nomes originários e eram submetidos ao embranquecimento cultural, o que se torna uma barreira no processo de resgate histórico, cultural e religioso desses antepassados.
  • Memória é Poder: O resgate da memória é uma forma de despertar a ancestralidade adormecida. Cultuar os ancestrais é manter viva a memória, pois eles são “caminho, direção, sabedoria — e, sobretudo, são força”. O processo de mapeamento da árvore genealógica é uma ferramenta de reconstrução da memória, da história, dos vínculos e dos saberes perdidos no tempo, possibilitando resolver negatividades ancestrais que reverberam na vida dos descendentes.

6.2. O legado dos sacerdotes e a continuidade da tradição

A força da Quimbanda em Porto Alegre é mantida por sacerdotes e sacerdotisas que, como Mãe Ieda e outros líderes da Linha Cruzada, zelam pelos saberes e pela continuidade da tradição.

  • Linhagem e Outorga: A passagem da “mão de faca” é a transmissão de um legado que garante a vitalidade e a autenticidade dos fundamentos. A história de Antônio Gilberto Ferreira, que recebeu a mão de faca de Mãe Zilá de Xapanã, que por sua vez herdou tradições de Orlando de Xapanã, e que depois a passou para o fundador da Rama dos 4 Caminhos, ilustra a importância dessa linhagem na Quimbanda Tradicional Gaúcha.
  • O Retorno às Origens: A história da Rama dos 4 Caminhos, que teve sua iniciação ligada a Mãe Zila, uma exemplar sacerdotisa que criou raízes no bairro Restinga, em Porto Alegre, demonstra como o destino (ou Exu) corrige a rota e ressignifica a relação com o passado e com a tradição gaúcha. A tradição da Rama dos 4 Caminhos torna-se um legado no momento em que recebe a mão de faca dentro da tradição da Quimbanda Gaúcha, fundamentando as bases das raízes da tradição.

7. A quimbanda em Porto Alegre: Um guia para o interessado

Para quem busca a Quimbanda em Porto Alegre, é fundamental entender que a jornada é de profundo respeito e busca por conhecimento.

7.1. Como escolher um terreiro

A escolha de um terreiro deve ser feita com cautela e discernimento.

  • Busque a Tradição: Procure casas que se identifiquem com a Quimbanda Tradicional Gaúcha ou Linha Cruzada, que valorizam os fundamentos locais e a ancestralidade.
  • Observe a Ética: A Quimbanda é uma religião de disciplina e responsabilidade. Observe a conduta dos líderes e dos membros, e se a casa promove o combate ao preconceito.

7.2. A prática e a disciplina

A Quimbanda exige disciplina e um compromisso com a transformação pessoal. O culto não é estabelecido pelo luxo, mas pela essência que encontra solo para se manifestar.

  • O Culto aos Ancestrais: Lembre-se que o culto a ancestrais e antepassados é um pilar. O mapeamento da árvore genealógica é um passo importante para quem deseja se aprofundar na tradição.
  • A Força da Magia: Entenda que a magia é uma ferramenta de realização de potenciais, e não um meio para a vingança ou a manipulação.

Conclusão: A força inabalável da quimbanda em Porto Alegre

A Quimbanda em Porto Alegre é um fenômeno religioso de grande profundidade, que exige respeito, estudo e dedicação para ser compreendido em sua totalidade. Ela é a manifestação de uma força ancestral que resistiu à escravidão, ao preconceito e à marginalização, e que hoje se afirma como um caminho de conhecimento, magia e transformação.

Ao buscar a Quimbanda na capital gaúcha, o indivíduo não apenas encontra um terreiro ou um guia espiritual; ele se depara com uma história de resistência, um complexo sistema teológico e um legado cultural que é parte indissociável da identidade afro-gaúcha.

A profundidade da Quimbanda e das tradições afro-gaúchas revela a necessidade de um estudo contínuo e aprofundado. Se o seu interesse vai além da prática e se estende à pesquisa, à história e à teologia, você pode ampliar seu conhecimento na jornada de resgate e reconexão com seus ancestrais.

Referências e fontes consultadas

Este artigo foi construído com base nas minhas observações e pesquisas além das informações contidas nos seguintes documentos:

  • LEISTNER, Rodrigo Marques. Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
  • SILVA, Suzilene David da. A Quimbanda de Mãe Ieda: religião “afro-gaúcha” de “exus” e “pombas-giras”. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.
Culto a ancestrais em Porto Alegre, Rio Grande do Sul
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Núcleo de estudo e pesquisa ancestral

O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.

Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.

As raízes ancestrais estão profundamente entrelaçadas às memórias da alma. Nutrir a memória é cultuar os ancestrais.