A Quimbanda e o culto aos ancestrais e antepassados na Rama dos 4 Caminhos
É importante mergulhar na imensidão dos cruzamentos de saberes das tradições afro-gaúchas para assimilar o horizonte do que é a Quimbanda gaúcha e o seu espectro de alcance teológico, ritual, litúrgico e histórico.
A Quimbanda no Rio Grande do Sul, diferente de outras tradições quimbandeiras do eixo Rio–São Paulo — que mantiveram proximidades com influências Congo-Angola e com tradições como as macumbas cariocas, fortemente marcadas pela Cabula e pelos Calundus —, buscou nas fundamentações das tradições do Batuque a riqueza de elementos fundantes da sua própria estrutura religiosa.
Percebemos que diversas casas tradicionais de Quimbanda buscaram elementos do culto ao orixá Bará como base para a estruturação de assentamentos e oferendas a Exus e Pombagiras. Isso é evidenciado em trabalhos como “Os outsiders do além: um estudo sobre a Quimbanda e outras ‘feitiçarias’ afro-gaúchas”, de Rodrigo Marques Leistner, onde sacerdotes como Pai Eliseu do Ogum e Pai Vinícius de Oxalá são citados como lideranças que participaram da formatação da Linha Cruzada. Foi nesse contexto que casas de Batuque, que já possuíam em suas tradições a Umbanda, iniciaram o cruzamento de fundamentos, dando origem às bases fundadoras do culto a Exu e Pombagira em uma nova estrutura religiosa independente, na qual o ato sacrificial — o corte — passou a fundamentar os assentamentos dessas entidades.
Podemos deduzir que foi dos axés de Bará que as facas comeram sangue pela primeira vez na Quimbanda gaúcha. Essa é uma dedução pessoal, e posso estar enganado, mas parece coerente acreditar nessa perspectiva, uma vez que Bará/Exu também possui um assentamento na rua — o assentamento de Bará Lodê — e, ao pesquisarmos os pontos cantados mais antigos da Quimbanda gaúcha, encontramos inúmeras referências ao “Bará da Rua” associado aos Exus da Quimbanda:
Bará da rua, Bará Exu,
Bará da rua, saravá Destranca Rua,
Destranca Rua, destranca meu caminho,
Que foi trancado pelo povo pequenino.
No meu castelo tem sete guri (2x),
Sete guri que trabalham pra Bará,
Sete guri que trabalham pra Exu.
Podemos perceber o entrelaçamento de Bará da Rua, ou Bará Lodê, com o campo de ação de Exu na Quimbanda — como se Bará fosse o senhor fundador da Linha Cruzada (ou Quimbanda), o senhor dos Exus e Pombagiras, aquele que detém o poder dos caminhos e que confere a chancela espiritual para essa nova forma de culto.
Já ouvi de sacerdotes mais antigos de Nação que Bará Lodê e Ogum Avagã podem, em determinados momentos, utilizar os Exus e Pombagiras para realizarem certos trabalhos em seu nome — como se, nas casas de Linha Cruzada, os Exus e Pombagiras estivessem sob sua tutela, estabelecendo uma relação de troca de poder e de execução espiritual.
As bases da Quimbanda gaúcha podem ser consideradas como um oceano profundo e vasto, que se perde no horizonte. Isso porque o Batuque, diferente dos Candomblés que mantiveram-se mais fechados em suas respectivas nações, constitui-se como uma fusão de nações, ainda que preserve particularidades específicas de cada uma.
Como assim? Por exemplo: todas as tradições cultuam as mesmas divindades, mas podem apresentar particularidades em suas fundamentações. Assim, encontramos divindades voduns cultuadas como orixás nagôs dentro de uma mesma tradição — o que demonstra a complexidade dos seus rituais, teologias e liturgias.
É justamente nesse contexto de cruzamento e sincretismo teológico que nasce a Linha Cruzada, que posteriormente viria a ser conhecida como Quimbanda Tradicional Gaúcha.
A outorga passada entre familiares e a fundação da Rama dos 4 Caminhos
Cresci na maior periferia do Rio Grande do Sul, em um bairro chamado Restinga, que internamente é dividido em dois hemisférios: a Restinga Nova e a Restinga Velha. Foi nesse bairro que tive meu primeiro contato com as tradições afro-diaspóricas gaúchas, como o Batuque, a Quimbanda e a Umbanda, além de ter sido benzido diversas vezes por uma benzedeira que morava muito próxima da minha casa (preciso descobrir o nome dessa benzedeira).
Durante a adolescência, frequentei diversas sessões e festas de Quimbanda na Restinga, sempre encantado pela musicalidade e irreverência de Exu e Pombagira, e também pelo clima de confraternização entre amigos e desconhecidos — um verdadeiro momento de congregação, de fazer inveja a muita igreja.
Com o tempo, porém, meu olhar mais esotérico acabou me afastando desse encantamento. Fui me desmotivando ao ver a banalização com que muitas pessoas recorriam à Quimbanda, sempre pedindo vinganças, forçando paixões e atacando quem quer que se colocasse em seu caminho. Ver animais sendo sacrificados com esses propósitos também colaborou para o meu afastamento.
Meu distanciamento cresceu ainda mais quando mergulhei na doutrina espírita — o que, mais tarde, percebi ter sido uma armadilha, já que é evidente o enorme preconceito e a ignorância do movimento espírita em relação às tradições afro-indígenas brasileiras.
Anos depois, quando conquistei minha independência e saí do bairro, prometi a mim mesmo que nunca mais moraria na Restinga, por conta das constantes guerras entre gangues e facções, além da brutalidade que marca toda periferia no Brasil. Foi nessa mistura de desilusões, medos e falta de conhecimento que mantive minhas perspectivas espirituais e iniciáticas afastadas do bairro.
Mas o destino — ou melhor, Exu, e principalmente a Senhora Maria Mulambo Anciã — corrigiu a rota da jornada, ressignificando completamente minha relação com o passado e com a quimbanda tradicional gaúcha.
Após muitas tentativas frustradas de buscar uma iniciação em alguma tradição de Quimbanda Congo-Angola, tive um súbito insight de desilusão e me perguntei: “E se eu primeiro não buscar uma iniciação na quimbanda tradicional gaúcha? E se, na minha árvore genealógica, houvesse algum macumbeiro que pudesse me iniciar?”
Conversei com meu pai, e ele me sugeriu falar com uma prima de segundo grau, a prima Aida. Ela, no entanto, não poderia me passar a mão de faca nem assentar meu Exu e Pombagira, pois era iniciada apenas no Batuque. Mas me passou o contato de outro primo de segundo grau: Antônio Gilberto Ferreira.
E foi aí que o mundo não apenas girou — ele capotou! Antônio Gilberto Ferreira já havia aparecido na minha pesquisa de árvore genealógica, e eu até havia tentado contato com ele pelo Instagram, sem sucesso. Depois descobri que ele simplesmente havia esquecido a senha! Felizmente, a prima Aida manteve o contato e me passou o telefone dele.
Após cerca de dois meses de preparação e conversas, fui até Arroio do Meio, terra de muitos dos meus antepassados, e foi lá que a Senhora Maria Mulambo Anciã e o Senhor Zé Pelintra foram assentados. Foi também ali que recebi a mão de faca, dentro da nossa tradição.
Mas onde entra a Restinga nessa história toda? Antônio Gilberto foi iniciado pela saudosa Mãe Zila de Xapanã, que deixou um legado de mais de 52 anos de culto às tradições afro-gaúchas. Mãe Zila viveu na Restinga e ali construiu todo o seu legado, formando uma grande família religiosa.
Minha iniciação, minha tradição e minha força ancestral vêm, portanto, de uma exemplar sacerdotisa que criou suas raízes justamente no bairro onde cresci — o mesmo bairro ao qual prometi nunca mais retornar.
As raízes ancestrais nos entrelaçam de formas inimagináveis. A nós, resta apenas assumir a responsabilidade de guardiões, zelando pelos saberes e pela continuidade da tradição.
Não há barreira que Exu e Pombagira não ultrapassem. Mas, para isso, é preciso coragem — coragem para vencer até mesmo a nossa moral enrustida, travestida de falsa sabedoria.
Foi nesse cenário que nasceu a Tradição da Rama dos 4 Caminhos — fruto da ressignificação, do legado familiar, da terra dos antepassados e do retorno às origens.
O culto a ancestrais e antepassados na rama
É regra e fundamento: na Rama dos 4 Caminhos, todos devem mapear sua árvore genealógica, buscando principalmente resgatar os ramos matriarcais. Cultuar os ancestrais é cultuar e manter viva a memória dos nossos antepassados. Eles são os elos que nos conectam às origens, são caminho, direção, sabedoria — e, sobretudo, são força. Estão mais próximos dos ancestrais do que nós, tanto por estarem no além quanto pela proximidade genealógica que mantêm com aqueles que vieram antes.
Resgatar essas memórias provoca um grande choque de retorno, pois desconstruímos castelos de ilusão e adentramos as sombras da alma familiar. Nesse processo, temos a oportunidade de trazer à luz aqueles que verdadeiramente merecem memória e ressignificação.
É preciso despertar a consciência de que somos frutos de uma grande árvore de escolhas, comportamentos e ações — e que muitos desses acontecimentos foram sombrios.
No meu caso, descobri um ramo familiar que se desenvolveu dentro de uma cultura escravocrata, até que meus bisavós se mudaram para Porto Alegre. Talvez essa mudança tenha possibilitado ao meu avô romper com os padrões herdados, pois, de outro modo, ele jamais teria se casado com minha avó, que era negra — algo que o preconceito e as estruturas familiares da época certamente não permitiriam.
Ao mesmo tempo em que resgatei a história familiar pelos ramos matriarcais, descobri diversos antepassados negros, escravizados e ex-escravizados, incluindo uma matriarca que conseguiu comprar sua própria alforria e a de seus filhos. Ainda contarei a história desses familiares que sobreviveram às monstruosidades da escravidão, pois é a eles que devemos prestar culto: foram eles que preservaram, nos costumes, nos valores e nos laços consanguíneos, nossa ligação com uma ancestralidade de culto à natureza — detentores de saberes da feitiçaria afro-indígena — e que hoje nos permitem ter, em nossa Rama, ancestrais que podem retomar seus lugares de direito, sendo fontes de sabedoria e raízes que alimentam nossa espiritualidade.
Não precisamos pedir constantemente a eles “abertura de caminhos”, pois os laços espirituais já são, por si só, alimento e sustentação. Antes de qualquer realização, é na força ancestral que devemos buscar coragem, resiliência e energia interior — pois carregamos sua memória e parte de suas existências em nós.
É preciso ressignificar nossa relação com os antepassados e ancestrais. Eles não são fontes de realização material, mas de realização espiritual — e quando nos sentimos vivos espiritualmente, o mundo ao nosso redor se torna fonte de riquezas.
Viver em paz é o ouro da alma.
Na Rama dos 4 Caminhos, pedimos primeiro alimento espiritual, para que tenhamos força ancestral suficiente para realizar aquilo que buscamos.
Como você pode participar da Rama dos 4 Caminhos?
Os ritos da Rama, neste momento, são fechados, destinados apenas a familiares e pessoas muito próximas.
Entretanto, estou em processo de organização para, em um futuro próximo, abrir espaço para novos membros na comunidade.
Entendemos que um núcleo de Quimbanda é, antes de tudo, uma comunidade familiar — uma relação que deve ser construída com tempo, confiança e respeito, onde valores como lealdade, reciprocidade, fraternidade e ajuda mútua precisam ser cultivados e fortalecidos.
Sugiro acompanhar as iniciativas do Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral que promovemos ao longo do ano. Assim, você poderá compartilhar saberes em comum, algo fundamental para tornar-se, no futuro, um membro da Rama.
Aqui, as sementes falam.
Que os ventos tragam as sementes do amanhã para todos.
Thiago Blauth Ferreira, filho de Ruth Blauth Ferreira e Carlos Fernando Ferreira. Líder em terra na Rama dos 4 Caminhos.
Participe, é totalmente gratuito
Núcleo de estudo e pesquisa ancestral
O Núcleo de Estudo e Pesquisa Ancestral é um espaço dedicado à escuta profunda, ao estudo crítico e à vivência espiritual das tradições de matriz afro-indígena por meio do reconhecimento e da valorização dos saberes ancestrais. Nosso ponto de partida é a consciência de que somos frutos de muitas camadas de tempo, história, memória e espiritualidade. Estudar o passado não é um exercício apenas intelectual, mas um mergulho vital nas forças que nos sustentam no presente.
Nosso núcleo se dedica a explorar, por meio de leituras, práticas e partilhas coletivas, temas como genealogia ancestral, culto aos antepassados e ancestrais, mitologias de matriz africana e indígena, cosmogonias e cosmologias tradicionais, bem como teologias vivas e psicologias da religião a partir do olhar das próprias tradições. Valorizamos especialmente o saber que nasce da oralidade, da experiência, da ritualística e da memória encarnada nos corpos, casas, terreiros e territórios.
